Adega - Edição 177 (2020-07)

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obra passa a ser conhecida no ocidente apenas
com a tradução para o inglês do também poe-
ta Edward Fitzgerald, de 1859. E foi com esta
tradução que Khayyam desembarcou em Lisboa,
para influenciar um dos maiores nomes da lite-
ratura portuguesa do século XX. Ainda hoje, um
exemplar todo sublinhado e com anotações à lá-
pis do Rubaiyat é conservado na Casa Fernando
Pessoa, na capital portuguesa.

Transcendência
A obra de Khayyam trata da condição humana,
efêmera e, muitas vezes, miserável, e do êxtase da
embriaguez do vinho como transcendência, sus-
pensão dessa condição. Escritas nos últimos anos

de vida de Pessoa, as canções de beber têm uma
atmosfera diáfana, distante daquele frenesi dos
versos de Álvaro de Campos, dos desassossegos
de Bernardo Soares. É a quietude de um Alber-
to Caeiro bêbado, o ingênuo guardador de reba-
nhos, que sabe a verdade, é feliz, e no limite da
vida silencia todas as paixões, abdica do trabalho
maçante do pensamento, e põe-se a sonhar, com
o copo cheio de vinho. No mês em que faleceu,
novembro de 1935, Pessoa escreveu o seguinte
poema:

“Não me digas mais nada. O resto é vida.
Sob onde a uva está amadurecida
moram os meus sonos, que não querem nada.
Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.

Sob os ramos que falam com o vento,
inerte, abdico do meu pensamento.
Tenho esta hora e o ócio que está nela.
Levem o mundo: deixem-me o momento!

Se vens, esguia e bela, deitar vinho
em meu copo vazio, eu, mesquinho
ante o que sonho, morto te agradeço
que não sou para mim mais que um vizinho.

Quando a jarra que trazes aparece
sobre o meu ombro e a sua curva desce
a deitar vinho, sonho-te, e, sem ver-te,
por teu braço teu corpo me apetece.

Não digas nada que tu creias. Fala
como a cigarra canta. Nada iguala
o ser um som pequeno entre os rumores
com que este mundo (verso incompleto)

A vida é terra e o vivê-la é lodo.
Tudo é maneira, diferença ou modo.
Em tudo quanto faças sê só tu,
em tudo quanto faças sê tu todo.

Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros
lisboeta, escreveu em seu Livro do Desassossego:
“saber não ter ilusões é absolutamente necessário
para se poder ter sonhos”. Na primeira estrofe,
Pessoa fala não de sonhos, mas de sonos — que
nada querem e nada sonham, mas que moram
“sob onde a uva está amadurecida”. A estrofe toda

As canções


de beber


foram


inspiradas


diretamente


no Rubaiyat,


do poeta


persa Omar


Khayyam

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