Adega - Edição 177 (2020-07)

(Antfer) #1

Edição 177 >> ADEGA 79


é uma introdução ao estado apático, mas tranqui-
lo, do poeta que decifrou o vazio da vida, a ilu-
são do mundo. Definido no último verso como
“uma ilusão vista e sentida”, este mundo alude
ao sensorialismo da poesia de Caeiro, o mais sim-
plório dos seus heterônimos mais conhecidos,
cujos pensamentos são apenas sensações, e que
percebia e experimentava a realidade de forma
límpida, transparente. É como se o Pessoa das
canções de beber, mais maduro, se conciliasse
com a constatação de que o mundo é o mundo
das aparências: ele tem o momento, e o ócio que
reside nele; o mundo, pode ser levado embora.
Na terceira estrofe, em que aparece o vinho,
vemos reaparecer a oposição entre vida e sonho:
diante daquilo que sonha, o eu lírico é mesqui-
nho, um estranho de si mesmo, um morto, agra-
decido pelo vinho servido, talvez por piedade. Na
estrofe seguinte, o vinho segue sendo deitado no
copo vazio, pela figura esguia e bela da qual o nar-
rador só vê o braço, mas que o apetece por inteiro:
de uma parte, ele tira o todo; do contingente, ele
antevê a totalidade. Pessoa, que no último verso
do poema diz “em tudo quanto faças sê tu todo”,
deixa-nos por acaso o poema inacabado: qual pala-


vra ele usaria, ali, para definir mais uma vez “este
mundo”, para rimar com “fala” e “iguala”?

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

A transitoriedade da vida, tema longamente
esmiuçado no Rubaiyat de Khayyam, em sonetos
de Luís de Camões como “Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades”, e ressignificado pela
poesia absolutamente moderna de Pessoa, envol-
ve todos os quartetos ébrios do poeta. O ato de
beber, de encher e esvaziar uma taça de vinho, é
a metáfora máxima para o sentimento dos efême-
ros tempos modernos. Pessoa acena, já em 1933,
para o que o filósofo polonês Zygmunt Bauman
definiria como “modernidade líquida”. À volati-
lidade, maleabilidade de nossas relações sociais,
à embriaguez da profusão de estímulos sensoriais
aos quais somos submetidos cotidianamente, só
resta, de fato, beber e “buscar na linha fria do
horizonte, a árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
— os beijos merecidos da Verdade”.

O ato de
beber, de
encher e
esvaziar
uma taça de
vinho, serve
de metáfora
para a
efemeridade
do tempo
moderno
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