Clipping Banco Central (2020-07-31)

(Antfer) #1

Banco Central do Brasil


Valor Econômico/Nacional - Eu & Fim de Semana
sexta-feira, 31 de julho de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

Numa outra reflexão, esclarece: “Se alguma
vez erra quem se aconselha, raríssima vez
acerta o que só pelo próprio juízo se governa”.
E sem saber o que aconteceria no Brasil, mais
de 200 anos depois de sua época e de seus
escritos, recomendava: “Defendei mais a pátria
que os parentes”.


Há enorme abismo entre persistentes
concepções anticientíficas relativas à doença e
à cura, na cabeça de toscos e de poderosos,
no confronto com a lucidez de Teresa
Margarida em sua “Obra Reunida”. Dolorosa
evidência do que fizeram conosco e nós
mesmos fizemos e continuamos a fazer para
chegar a este novo tempo com uma visão das
coisas e do mundo que é mera sobrevivência
da barbárie.


Essas distorções deveriam ser levadas muito a
sério. Seria interessante e útil que, nas ciências
sociais, sociólogos e antropólogos realizassem
pesquisas empíricas e objetivas sobre os
fundamentos dessa espécie de ideologia
retrógrada do que é doença e cura.


Aí temos de tudo. Desde a concepção de que a
doença é um castigo divino que pune os
crescentes pecados do homem, especialmente
para que abra os olhos para os abusos e
violações da vontade de Deus. Nela, as
doenças sem cura são aquelas que Deus
reserva para a invisível medicação de sua
farmácia celestial e sua bondade seletiva.


Se bem observarmos, veremos que a
dimensão medicinal da nova religiosidade
fundamentalista se expande de modo
geométrico na proporção igualmente
geométrica da difusão de doenças
desconhecidas ou mal conhecidas.


Na ideologia popular do que é o poder de


Deus, usa Ele o castigo para chamar os
homens à salvação. Algo difícil de
compreender, como o de fazer-se mau para
poder mostrar-se bom. Sem poupar mesmo os
que se dizem terrivelmente cristãos.

Bem vistas as coisas, notaremos que o castigo
da doença sem cura conhecida é instrumento
muito eficaz de uma guerra ultraconservadora
contra as grandes mudanças sociais do pós-
guerra, especialmente dos últimos 50 anos.

O aumento significativo da liberdade pessoal
de cada um, homens e mulheres, a
emancipação da mulher, a profunda
transformação no conceito de casamento e de
família, a antecipação da maturidade das novas
gerações, a libertação do discernimento de
crianças e jovens, tudo isso fica reduzido à
concepção de castigo pelo pecado da ruptura
da ordem tradicional, conservadora e iníqua.

Deus está sendo usado, de maneira cruel,
pelos oportunistas do mando e do autoritarismo
para instituir uma nova sujeição social, em que
as pessoas parecem livres, mas são de fato
escravas de uma liberdade manipulável.

O novo homem é livre desde que se submeta
ao estilo do mando antidemocrático que é o do
autoritarismo dos micropoderes que estão em
tudo, em todos e em todas as partes. Nesse
sentido não é novo, é velho e antissocial,
cúmplice das enfermidades que escancaram
nossa pobreza de espírito.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da
Academia Paulista de Letras. Entre outros
livros, autor de "A Política do Brasil Lúmpen e
Místico" (Contexto).
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