Clipping Banco Central (2020-07-31)

(Antfer) #1

Banco Central do Brasil


Valor Econômico/Nacional - Eu & Fim de Semana
sexta-feira, 31 de julho de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

desigualdade. Uma escolha como essa seria
desperdiçar a oportunidade que a história nos
legou com a crise da covid-19, seguindo o
mesmo roteiro trágico doBrasil após a abolição
da escravatura.


Para evitar essa repetição trágica, as políticas
sociais pós-pandemia deveriam se guiar pelo
conceito de desigualdade multidimensional, isto
é, há vários fatores que a originam e a
caracterizam, e a transferência de renda é
fundamental, mas insuficiente. Parafraseando
Nabuco, é preciso não só repassar recursos
preferencialmente aos mais pobres, mas atacar
a obra da desigualdade, entidade construída
profundamente por séculos.


Seguindo essa linha de mudança, cinco
aspectos são fundamentais daqui para diante.
Em primeiro lugar está o aprofundamento e
aprimoramento dos programas de transferência
de renda. A maioria dos analistas concorda
sobre ampliar a base de pessoas (sobretudo
nos centros urbanos) e o montante distribuído,
mas há dúvidas quanto à abrangência dos
beneficiados, à forma de financiamento e o
valor aí embutido, bem como em relação ao
próprio desenho. Esta é a discussão que o país
precisa urgentemente fazer nos próximos
meses, o que implica um debate profundo para
evitar decisões rápidas e erradas. Dos vários
aspectos presentes nesta complexa discussão,
destaco um: é necessário ter condicionalidades
para os beneficiários, de maneira que a
transferência do recurso seja acompanhada
pela criação de capacidades familiares e/ou
individuais que permitam, ao longo do tempo, a
saída das pessoas de sua situação inicial de
pobreza. Para as famílias pobres com crianças
e jovens, a vinculação à educação e à saúde
devem permanecer como no Bolsa Família e
serem aperfeiçoadas. Um exemplo: se o valor
da transferência aumentar para os grupos
familiares que têm adolescentes na escola, há


grandes chances de se reduzir a alta evasão
escolar no ensino médio, permitindo a essa
juventude ter oportunidades que seus pais não
tiveram. Daí ser uma política de combate
intergeracional da pobreza.

No caso de famílias ou indivíduos mais pobres
que não têm filhos, é preciso pensar num outro
arco de condicionalidades. Cursos
profissionalizantes podem ser um caminho,
mas não creio ser o único. O incentivo ao
trabalho na comunidade deveria ser uma outra
forma de ser beneficiário desse programa de
transferência de renda, criando assim
capacidades comunitárias de combate aos
problemas sociais.

Uma visão dimensional de combate à pobreza
e à desigualdade exige, em segundo lugar,
uma política de ampliação e melhoria da
qualidade dos serviços públicos. De nada
adiantarão programas de transferência de
renda aos mais pobres sem a melhoria das
políticas públicas universais. E aqui está uma
das maiores contradições atuais do governo:
no mesmo momento em que ele acena
acertadamente com a ampliação do Bolsa
Família, a gestão da saúde, da educação, dos
serviços assistenciais, das políticas urbanas de
moradia, das ações no campo cultural, entre as
principais, encontram-se em estado deplorável.
O problema é que o presidente Bolsonaro e
equipe se colocaram, desde o início, contra o
ideário da Constituição de 1988 de expansão
do “welfare state”.

Além disso, o bolsonarismo é contrário a outro
aspecto essencial no combate à desigualdade:
é preciso ter ações que levem em conta a cor,
o gênero e a região da vulnerabilidade social
brasileira. A mudança social não será
alcançada apenas transferindo renda. É
fundamental garantir direitos iguais a todos, já
que as diferenças sociais do país não são fruto
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