Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13


Os populistas norte-americanos


contra o lobby dos médicos


A negligência de Donald Trump e Jair Bolsonaro diante da crise sanitária reforçou a ideia de que
os “populistas” seriam hostis à ciência, particularmente a médica. A história dos Estados Unidos e
a do Canadá lembram o contrário: os populistas lutaram para democratizar o saber e a saúde,
enquanto as corporações de médicos trabalham para reservá-los aos ricos

POR THOMAS FRANK*

NOS ESTADOS UNIDOS, O GRANDE PAVOR DEMOCRÁTICO


N


este ano de pandemia, a crise
política que lhe serve de fundo
teria relação, segundo dizem,
com a obstinação do povo
norte-americano em rejeitar a auto-
ridade do discurso científico. Veja
aquele pessoal brincando na piscina
do restaurante, perto do Lago de
Ozarks (Missouri), enquanto uma
epidemia terrível varre o país... E to-
da aquela gente que espalha as mais
absurdas teorias da conspiração,
compartilha recomendações sanitá-
rias fantasiosas nas redes sociais, faz
compras sem máscara, lança fogos
de artifício no meio da rua... E o que
dizer do presidente imbecil, que ig-
nora as recomendações de seus pró-
prios especialistas, passa o tempo
apontando os responsáveis sem
nunca se incluir entre eles e chegou a
aconselhar as pessoas a tomar de-
sinfetante, já que funciona tão bem
na limpeza da cozinha e do vaso
sanitário?
Essa batalha implacável entre “ig-
norantes” e “iluminados” está há
anos no centro da vida política dos
Estados Unidos.^1 Para muita gente, os
democratas, os “progressistas”, são
de longe os mais alinhados com a
realidade objetiva: eles ouvem reli-
giosamente as opiniões dos ganha-
dores do Prêmio Nobel e outros lau-
reados por prêmios científicos de
excelência. Já os republicanos vive-
riam em outro mundo – um mundo
de fábulas e lendas, onde a verdade
não tem valor.
Em tempos normais, nosso clube
de comentaristas, autoproclamados
formadores de opinião, aproveita-se
da disputa para classificar cada lado.
Nós somos os espertos! Eles são os es-
túpidos! Mas, com a pandemia, o
confronto de repente ganhou outra
nitidez. Os norte-americanos respei-
táveis proclamam com voz trêmula
sua eterna e inabalável confiança na
ciência, e as autoridades democratas
exortam uma nação de joelhos a se-
guir os conselhos dos especialistas
como se fossem a palavra divina.

Nossos formadores de opinião
também têm uma teoria para expli-
car os comportamentos irresponsá-
veis observados entre alguns grupos,
que favorecem a propagação do ví-
rus. Esses desgarrados não são ape-
nas idiotas, garantem eles: agem sob
a inf luência de uma verdadeira dou-
trina anticiência – o “populismo”. Os
partidários dessa fé – os “populistas”,
portanto – são asnos incultos ressen-
tidos contra aqueles que são mais
instruídos, devotando-lhes o mais
profundo desprezo.^2 Eles preferem
confiar em palpites a acreditar no sa-
ber livresco, desdenham das reco-
mendações dos profissionais de saú-
de, exaltam a sabedoria das multidões


  • e, é claro, são racistas. O populismo
    é o inimigo da ciência: está em guerra
    contra o pensamento racional. Ele é
    cúmplice na propagação do mal, se
    não for o próprio mal.


PRIVILÉGIOS DO SABER
Eis um pequeno silogismo que a clas-
se intelectual norte-americana não
se cansa de nos apresentar – e como
poderia ser diferente, se ele é tão se-
dutor e acaricia as vaidades? A ciên-
cia médica é a verdade, o populismo
está errado: essa evidência é tão f la-
grante que glorificar a primeira e
condenar a segunda se tornou um te-
ma banal, alimentando artigos e edi-
toriais até a exaustão.
Acontece que tudo isso é um enor-
me equívoco. Se os Estados Unidos se
mostram tragicamente incapazes de
lidar com a ameaça do novo corona-
vírus, isso não é decorrência funda-
mentalmente da extraordinária estu-
pidez de Donald Trump – embora ela
tenha seu papel. Isso se dá em razão
de um sistema: o sistema de saúde dos
Estados Unidos. É ele que pisoteia a
própria ideia de saúde pública e
transforma o acesso à saúde em um
luxo reservado a poucos. É ele que jo-
ga as pessoas na miséria por causa de
uma simples perna quebrada, que re-
cusa atendimento a quem não tem se-
guro, que retira o seguro de quem es-

tá desempregado – e a pandemia está
tirando o emprego de milhões de pes-
soas. Por fim, é ele que, no dia em que
a cura para a Covid-19 estiver dispo-
nível, a venderá a preço de ouro.
E esse sistema é o que é porque a
“medicina organizada”, apoiada no
prestígio de que goza a especializa-
ção profissional, luta há quase um sé-
culo para garantir que ele não mude.
Ao contrário, durante todo esse pe-
ríodo, foi das fileiras populistas que
saíram os impulsos de reforma que
tentaram – sem sucesso – transfor-
má-lo, a fim de que ele esteja a servi-
ço da maioria. Em outras palavras,
nossos especialistas, acadêmicos e
pensadores muito sérios e suprema-
mente inteligentes erraram em tudo.
É precisamente porque nos prostra-
mos demais aos pés das recomenda-
ções científicas que a saúde pública
se tornou um sonho inatingível. E a
cura para o mal que nos atinge não
está em outra parte senão nesse po-
pulismo tão odiado e temido pelos
especialistas.
Para entender o que está em jogo,
precisamos começar definindo o ter-
mo. O vocábulo “populista” foi adota-
do em 1891 nos Estados Unidos, no
Kansas, por membros de um jovem
partido agrário. Com reivindicações
que iam do abandono do padrão ouro
à luta contra os monopólios, passan-
do pela nacionalização das ferrovias,
o movimento logo ganhou amplitu-
de, a ponto de seu sucesso, por um
tempo, parecer garantido. Mas isso
não se confirmou: em menos de dez
anos, o Partido Populista foi dizima-
do. Sua inf luência, porém, atravessou
gerações, já que algumas de suas
ideias podem ser encontradas no
Partido Socialista Americano, no
New Deal das décadas de 1930 e 1940
e nas campanhas presidenciais de
2016 e 2020 de Bernie Sanders.
A ascensão e queda dos populistas
norte-americanos – e aqui falo da-
queles que cunharam o termo – têm
sido um assunto muito apreciado pe-
los historiadores com uma veia ro-

manesca, e inúmeras obras foram de-
dicadas a ele. Todos esses trabalhos
destacam um fato curioso: os repre-
sentantes dessa corrente nada ti-
nham contra a ciência ou contra a
educação. Pelo contrário, seus dis-
cursos em defesa da tecnologia, do
conhecimento e da educação eram
tão sinceros e f loreados que ficamos
quase constrangidos em lê-los hoje.
Por que esses panegíricos? Porque os
populistas se consideravam perfeita-
mente alinhados ao progresso cientí-
fico do fim de século, defendendo
princípios como o Estado de bem-es-
tar e a intervenção do poder público.
Paralelamente, estavam em cons-
tante luta contra as elites econômicas
e intelectuais de seu tempo, com tan-
tos especialistas declarando ver a
mão de Deus na ordem estabelecida.
Para os populistas, todas as formas
de privilégio eram suspeitas, incluin-
do o prestígio no qual as profissões
superiores baseavam sua autoridade.
Um exemplo vívido dessa ideia está
no célebre Jardim do Éden, localiza-
do na cidade de Lucas, no Kansas: um
parque de esculturas, construído na
década de 1910, que é uma das pri-
meiras tentativas de popularizar teo-
rias populistas e socialistas. Entre
suas principais atrações, há uma ce-
na chamada “A força de trabalho cru-
cificada”, na qual um trabalhador é
torturado até a morte pelos mais
eminentes membros da comunidade:
um banqueiro, um advogado, um
médico e um padre.
Em suma, a visão de mundo dos
primeiros populistas era radicalmen-
te democrática: o povo tinha o pri-
mado de tudo, e o justo papel dos es-
pecialistas em uma democracia
deveria limitar-se a servir e informar
os cidadãos.
Os populistas do final do século
XIX eram pouco loquazes a respeito
da política de saúde. É preciso dizer
que a medicina norte-americana ain-
da não era o labirinto burocrático
terrivelmente caro que conhecemos
hoje. No entanto, assim que os preços
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