Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19


mente e não necessariamente se
queixa: “Foi muito mais frio na mi-
nha juventude. As geadas matavam
as batatas. Nos últimos vinte anos, os
tempos mudaram. Não está nevando
como antes. E realizamos muito mais
c o l h e i t a s! ”, d i z.
O paradoxo é que, a curto prazo, o
aumento das temperaturas se traduz
em uma melhoria na vida cotidiana
desses agricultores andinos, que ago-
ra cultivam diversas variedades de
tubérculos (batata e outros), mas
também feijão, ervilha, cevada e
aveia. “Vendemos nossas produções
na cidade”, diz Don Mamani. Essa co-
munidade possui recursos para alu-
gar um trator de tempos em tempos:
“Agora usamos apenas o huizo [pá
tradicional] para cantos inacessíveis
ao trator”. A melhoria é muito bem-
-vinda para esses agricultores, mas a
criação de lhamas se torna difícil com
a invasão de lagartas. Os dois enge-
nheiros agrícolas visitam um terreno
recentemente arado, colhem amos-
tras e testam seu teor de carbono. “O
trator ara o solo mais fundo que o
huizo: isso esgota mais solo e libera
mais CO^2 ”, suspiram. O benefício é
imediato, mas piora a situação a mé-
dio e longo prazo: “É difícil explicar
tudo isso aos camponeses pobres que
estão apenas começando a sentir a vi-
da um pouco mais fácil, ganhar mais.
Não dá para pedir que eles trabalhem
menos”, admitem os cientistas.


*Cédric Gouverneur é jornalista.


1 Antoine Rabatel (org.), “Current state of gla-
ciers in the tropical Andes: a multi-century
perspective on glacier evolution and climate
change” [Estado atual das geleiras nos Andes
tropicais: uma perspectiva de vários séculos
sobre a evolução das geleiras e as mudanças
climáticas], The Cryosphere, Goöttingen, n.7,
22 jan. 2013.
2 Étienne Berthier (org.), “Two decades of gla-
cier mass loss along the Andes” [Duas déca-
das de perda de massa glacial nos Andes],
Nature Geoscience, Londres, n.12, 16 set.
2019.
3 Koen Verbist e Tina Schoolmeester, Atlas de
glaciares y aguas andinos: el impacto del re-
troceso de los glaciares sobre los recursos
hídricos [Atlas de geleiras e águas andinos: o
impacto do recuo das geleiras nos recursos
hídricos], Unesco, Grid-Arendal, Paris, dez.



  1. Também disponível em inglês.
    4 “Monitoreo de glaciares tropicales andinos en
    un contexto de cambio climático” [Monitora-
    mento de geleiras tropicais andinas em um
    contexto de mudanças climáticas], relatório
    do IHH-UMSA, maio 2019.
    5 Cf. También la Lluvia [Também a chuva], filme
    de Iciar Bollain (França, Espanha e México,
    2010 ).
    6 Ler Maëlle Mariette, “En Bolivie, sur la route
    avec l’élite de Santa Cruz” [Na estrada da Bo-
    lívia com a elite de Santa Cruz], Le Monde
    Diplomatique, jul. 2020.
    7 Los Tiempos, Cochabamba, 2 jun. 2019.
    8 Ler Renaud Lambert, “Un coup d’État trop fa-
    cile” [Um golpe fácil demais], Le Monde Di-
    plomatique, dez. 2019.
    9 Mathias Vuille (dir.) “Rapid decline of snow
    and ice in the tropical Andes: impacts, uncer-
    tainties and challenges ahead” [Rápido declí-
    nio da neve e do gelo nos Andes tropicais:
    impactos, incertezas e desafios à frente], Uni-
    versidade de Nova York em Albany, Earth-S-
    cience Reviews, n.76, 2018.


PARA ALÉM DO MEDO DE VER OS MUSEUS FRANCESES VAZIOS


Polêmicas sobre a


restituição das obras


de arte africanas


Já se passaram três anos desde que o presidente Emmanuel Macron se comprometeu
a restituir os bens culturais africanos pilhados durante a colonização. Desde então,
a promessa percorre uma corrida de obstáculos. Enquanto colecionadores e museus
europeus se opõem como podem, os países espoliados sofrem para reunir
as condições necessárias para receber e conservar as obras

POR PHILIPPE BAQUÉ*

N


aquele 23 de março de 2019,
trezentas armas e obras rituais
do continente africano eram
leiloadas em uma sala em Nan-
tes. “Vocês receberão um recibo pela
compra, mas os fabricantes desses
itens receberam apenas a morte”, lan-
çou Thomas Bouli, porta-voz da asso-
ciação Afrique-Loire, interrompendo
a reunião. “A França acaba de emitir o
princípio da restituição de bens cul-
turais africanos saqueados e mal ad-
quiridos. E os objetos aqui apresenta-
dos fazem parte desses bens”,
completou. O leiloeiro anunciou, en-
tão, que, a pedido do Ministério da
Cultura, as cerca de trinta peças ori-
ginárias do Benin seriam retiradas do
catálogo. O governo de Porto Novo,
capital do Benim, foi o único a pedir
tal “restituição” depois de ter sido
alertado pelos ativistas de Nantes.
“Essas pessoas são a vergonha da
causa que defendem, se é que há uma
causa a defender”, defende-se Yves-
-Bernard Debie, advogado do Coleti-
vo de Antiquários de Saint-Germain-
-des-Prés. Além do aborrecimento de
ter perdido uma compra, o negocian-
te de arte se opõe vigorosamente à
própria noção de “restituição”, por-
que isso equivale, segundo ele, à rea-
lização de “uma clivagem: de um la-
do, proprietários ilegítimos; do outro,
populações espoliadas” – dicotomia
fortemente contestada pelo nego-
ciante de arte.
Um ano e meio antes, em 28 de
novembro de 2017, durante um dis-
curso na Universidade de Ouagadou-
gou (Burkina Faso), Emmanuel Ma-
cron havia abordado, para surpresa
de todos, esse assunto polêmico.
“Não posso aceitar que grande parte
do patrimônio cultural de vários paí-
ses africanos esteja na França”, disse
o presidente francês. “Há explicações
históricas para isso, mas não há justi-
ficativa válida, duradoura e incondi-

cional; a herança africana não pode
estar apenas em coleções particula-
res e museus europeus. [...] Quero
que sejam cumpridas as condições
para a restituição temporária ou defi-
nitiva da herança africana dentro de
cinco anos”, completou. E assim Ma-
cron levantava um tabu. Em julho de
2016, Jean-Marc Ayrault, então pri-
meiro-ministro, opôs-se de forma
contundente, em nome da inaliena-
bilidade do patrimônio, ao presiden-
te do Benin, Patrice Talon, que pedia
a repatriação da coleção de objetos
de arte reais “coletados” durante a
expedição militar do general Alfred
Amédée Dodds ao Daomé entre 1892
e 1894, e mantidos em Paris no Mu-
seu do Quai Branly-Jacques Chirac.

UM MOMENTO DE
EXTREMA DESINIBIÇÃO
Após seu discurso, Macron encomen-
dou um relatório a Bénédicte Savoy,
professor de História da Arte da Uni-
versidade Técnica de Berlim, e Felwi-
ne Sarr, professor de Economia da
Universidade Gaston-Berger, no Se-
negal. Em novembro de 2018, o resul-
tado do trabalho foi publicado sob o
título “Restituir o patrimônio africa-
n o”.^1 Os dois pesquisadores fazem
uma comparação entre as centenas
de milhares de objetos mantidos no
Ocidente – incluindo 88 mil em cole-
ções públicas francesas – com os
poucos milhares listados em museus
no continente negro. Para Savoy e
Sarr, o período colonial correspon-
dia, na França, “a um momento de
extrema desinibição em questões de
‘suprimento’ de patrimônio em suas
próprias colônias, uma bulimia de
objetos”. As relações de dominação
da época convidam, segundo eles, a
postular “a falta de consentimento
das populações locais durante a ex-
tração dos objetos” e a considerar que
as aquisições foram obtidas “por vio-

lência, astúcia ou condições de não
equidade”. Consequentemente, os
autores defendem a devolução de pe-
ças apreendidas durante conquistas
militares, mas também daquelas co-
letadas em missões científicas ou por
agentes da administração colonial.
Eles também pedem a devolução de
bens adquiridos ilegalmente após
1960 por meio do tráfico ilícito de
obras de arte. Para remover o obstá-
culo legal, os dois pesquisadores pro-
põem uma emenda ao Código do Pa-
trimônio francês, que estabelece os
princípios da inalienabilidade e im-
prescritibilidade dos bens culturais
pertencentes a coleções públicas.
Desde a apresentação do relató-
rio, Macron comprometeu-se a devol-
ver 26 peças ao Benin, corresponden-
do em parte aos objetos reivindicados
em 2016 por esse país: tronos, está-
tuas, portas esculpidas, relicários e
regalia (atributos de simbólicos mo-
nárquicos) que pertenciam aos reis
do Daomé. Essa orientação desper-
tou a hostilidade de grande parte dos
conservadores. “Os museus não de-
vem ser reféns da dolorosa história do
colonialismo”, denuncia Stéphane
Martin, ex-presidente do Museu do
Quai Branly, enquanto seu colega Ju-
lien Volper, curador do Museu Real
da África Central, em Tervuren, Bél-
gica, onde está uma das mais impor-
tantes coleções europeias de arte
africana, alarma-se com o prejuízo
que isso significaria para as coleções
nacionais.^2
Embora o relatório Savoy/Sarr
aborde apenas estabelecimentos pú-
blicos, comerciantes de arte e cole-
cionadores particulares também es-
tão sendo cobrados. “Como a França
perdeu toda sua inf luência na África,
o presidente ofereceu restituições aos
líderes africanos para manter os mer-
cados contra a China”, irrita-se Ber-
nard Dulon, presidente do Coletivo
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