Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

2 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


NYT A SERVIÇO DO LOBBY DA GUERRA


POR SERGE HALIMI*

O


s soldados norte-americanos
de 18 anos que partem hoje pa-
ra a guerra no Afeganistão ain-
da não eram nascidos quando
o confronto foi desencadeado. Em
2012, Donald Trump já havia concluí-
do: “Está na hora de deixar o Afega-
n i s t ã o”.^1 Não ficou provado que ele
atingiu seus objetivos melhor que seu
antecessor, Barack Obama.
Cada uma das tentativas de de-
sengajar os Estados Unidos militar-
mente de qualquer país – Síria, Líbia,
Coreia, Alemanha – provoca uma ba-
talha em Washington. Logo em se-
guida, o lobby das guerras se recria:
“Os russos estão lá! Os russos estão
chegando!”. O orçamento militar dos
Estados Unidos (US$ 738 bilhões em
2020) conseguiu representar mais de
dez vezes o da Rússia, atiçando os
ânimos de Moscou o suficiente para
que republicanos e democratas ui-
vassem juntos demonstrando seu pa-
vor. E podem contar com o apoio edi-
torial do New York Times.
Em 26 de junho, o jornal nova-ior-
quino espalhou um vazamento da
CIA segundo o qual a Rússia teria pa-
go recompensas a insurgentes afe-
gãos para que matassem soldados
norte-americanos.^2 Contudo, todos
se lembravam de que no mês anterior
à Guerra do Iraque o New York Times

já havia desempenhado um papel de-
cisivo na disseminação de mentiras
relativas às “armas de destruição em
massa” de Saddam Hussein.^3 A psico-
se antirrussa desse grande jornal li-
beral, aliás, salta aos olhos de quem
quer que pesquise os termos “Rússia”
ou “Putin” em um site de buscas.
O furo afegão – do qual o New York
Times parecia já duvidar oito horas
após tê-lo publicado... – levanta ou-
tras questões. Quem se beneficia des-
sa “informação” no momento em que
a retirada das últimas tropas parecia
quase acertada? Os Estados Unidos
têm motivos para se indignar de que
um de seus adversários declarados
ajudou insurgentes afegãos, visto que
seu aliado, o Paquistão, faz o mesmo
há muito tempo e que eles próprios,
entre 1980 e 1988, entregaram aos
mujahidin em guerra com Moscou
armas sofisticadas, graças às quais
estes últimos mataram milhares de
soldados soviéticos? Por fim, como
explicar que o jornal nova-iorquino,
que não deixou de nos oferecer gran-
des retratos comoventes de três mari-
nes supostamente vítimas das “re-
compensas russas” – um tinha um
bigode grande e fazia musculação,
outro adoraria rever o filme Guerra
nas estrelas, e o último amava suas
três filhas –, tenha “se esquecido” de

nos informar que outra agência de in-
teligência norte-americana, a Agên-
cia de Segurança Nacional (NSA), não
dava nenhum crédito ao furo da CIA?^4
Em 1º de julho, uma grande coali-
zão de parlamentares, democratas e
republicanos, no entanto, se valeu
das “revelações” do New York Times
para tornar mais difícil uma retirada
do Afeganistão. Porém, o melhor
meio de impedir que soldados es-
trangeiros continuem morrendo por
lá seria que eles saíssem dali.

*Serge Halimi é diretor do Le Monde
Diplomatique.

1 Twitter, 27 fev. 2012.
2 “Russia offered afghans bounty to kill U.S.
troops, officials say” [Rússia ofereceu recom-
pensas aos afegãos para matar soldados nor-
te-americanos, dizem oficiais], The New York
Times, 27 jun. 2020.
3 Cf. Fake News, une fausse épidémie? [Fake
news, uma falsa epidemia?], Manières de Voir,
ago.-set. 2020.
4 NSA differed from CIA on Russia bounty intel-
ligence [NSA diverge da CIA sobre inteligên-
cia das recompensas da Rússia], The Wall
Street Journal, Nova York, 1o jul. 2020.

Quem quer


prolongar a guerra


no Afeganistão?


© Cesar Habert Paciornik
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