Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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22 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


PROPOSTAS DE REMUNERAÇÃO DECENTE AOS TRABALHADORES DA CULTURA


O mundo da arte e da cultura, violentamente afetado pela gestão da crise sanitária,
se vê diante dos limites de um modelo em que a remuneração está muito conectada
com a dinâmica dos mercados. Romper a condição de intermitência em direção
a um salário vitalício permitiria aos trabalhadores das artes libertar suas atividades
do capital e dos subsídios estatais

POR AURÉLIEN CATIN*

A sede por segurança


social no mundo das artes


O


s trabalhadores do setor das ar-
tes e da cultura estão em difi-
culdades. No mundo do espe-
táculo, salas de teatro e de
cinema fecharam, o que significou
uma interrupção brutal no processo
de difusão das obras e na entrada de
dinheiro. Nas artes visuais, galerias e
museus deixaram de receber o públi-
co. No setor do livro, as vitrines das
livrarias permaneceram apagadas
durante semanas. Trabalhadores em
situações heterogêneas (artistas/au-
tores, empregados, trabalhadores in-
termitentes, microempreendedores,
trabalhadores temporários etc.) vi-
ram-se em uma situação de desem-
prego parcial, sem demanda de tra-
balho nem recursos.
Dezenas de milhares deles estão
atualmente sem renda ou na depen-
dência de dispositivos inapropriados,
como o “fundo de solidariedade para
as TPE [très petites entreprises – pe-
quenas empresas], autônomos e mi-
croempresários”, acessível aos artis-
tas/autores desde abril. Ao mesmo
tempo, sua proteção social está com-
prometida, pois recebem apenas
uma fração do que ganhavam em um
emprego ou no mercado. Para os
mais precários é uma dupla punição.
Portanto, a crise sanitária é uma
catástrofe, mas também um impulso
na tomada de consciência. Artistas,
autônomos e assalariados experi-
mentam, de maneira inédita, os limi-
tes de um modelo em que a renda está
ligada ao posto de trabalho ou ao ní-
vel f lutuante de um benefício indivi-
dual. Mais do que nunca, parece ar-
caico ligar a remuneração das
pessoas à dinâmica instantânea dos
mercados: essa lógica provoca des-
vios em nome do emprego ou do vo-
lume de negócios e expõe os traba-
lhadores aos abusos do capitalismo.
Graças à ação de coletivos de tra-
balhadores intermitentes engajados
na defesa do seguro-desemprego,
substituída por movimentos mais re-
centes como Art en Grève,^1 o cami-
nho “normal” da economia cultural é

agora identificado como fonte de so-
frimentos e desigualdades. Desse
modo, o episódio do coronavírus só
reforça uma constatação: o estatuto
dos trabalhadores e de todo o setor –
seu financiamento, sua organização,
suas estruturas e as representações
que estas veiculam – deve ser
transformado.
Nas artes e na cultura, alguns tra-
balhadores têm um emprego perma-
nente (assalariados da edição, músi-
cos de orquestra etc.), mas a maioria
é formada por artistas/autores, tra-
balhadores intermitentes (com ou
sem seguro-desemprego), microem-
preendedores, estagiários e estudan-
tes. Muitas vezes, a insuficiência de
suas rendas e as carências de sua pro-
teção social os levam a procurar um
emprego provisório no setor alimen-
tar, que os expõe ainda mais à
precariedade.
Reunidos em torno de apelos à
mobilização, como o do Art en Grève
e do Bas les Masques – Arts et Cultu-
re,^2 muitos destacam a inépcia de um
modelo em que a renda depende do
valor de cachês, do número de carac-
teres ou de um benefício. A convicção
de que o salário deveria ser um atri-
buto da pessoa se difunde. Em um
contexto profissional em que o traba-
lho gratuito é habitual, os contratos
são curtos, às vezes informais, e as re-
munerações beiram o insulto, a ideia
de uma renda básica pode parecer se-
dutora. No entanto, é preciso superar
a questão da “renda mínima” para as-
sumir o real impacto disso. Mais do
que uma remuneração mensal de 500
euros distribuída pelo Estado, anun-
cia-se a ideia de que um salário vitalí-
cio concebido como direito político
transformaria os trabalhadores das
artes em produtores e permitiria que
libertassem suas atividades do capi-
tal e dos subsídios estatais.

UM NOVO MODELO DE
SEGURO-DESEMPREGO
Certamente é fundamental lutar pa-
ra obter melhores condições de tra-

balho no quadro atual, mas trata-se
de considerar, sem demora, desco-
nectar o salário do emprego ou do
benefício dos autônomos. Hoje, pro-
vavelmente o meio mais seguro para
conseguir isso é redescobrir as bases
do regime da intermitência, um pla-
nejamento do seguro-desemprego
que permita aos artistas e técnicos
do espetáculo conservar seus salá-
rios entre dois compromissos. É todo
o poder do “salário continuado” que
se expressa por meio dessa ferra-
menta: fora do emprego, os trabalha-
dores não são pagos por um empre-
gador, mas por um caixa alimentado
por cotizações sociais.
Desse modo, coloca-se a questão
do desenvolvimento de um regime
que, como lembra a Coordenação dos
Intermitentes e Precários (CIP), não
foi criado em nome da exceção cultu-
ral, mas para responder a práticas de
emprego descontínuo. Ele não decor-
re de uma singularidade das profis-
sões do mundo do espetáculo, mas
pode ser adaptado a qualquer situa-
ção de trabalho em que a desconti-
nuidade dos compromissos seja
usual. Consequentemente, uma das
prioridades deveria ser obter a exten-
são horizontal do regime de intermi-
tência pela integração dos artistas/
autores, dos autônomos e dos tempo-
rários, como também sua extensão
vertical, ou seja, baixar o patamar de
entrada para 250 horas trabalhadas
(contra as atuais 507), para depois
chegar a zero hora.
A atribuição do salário socializa-
do – isto é, a parte do salário que não
é entregue diretamente ao assalaria-
do, mas obtida sob forma de cotiza-
ções sociais e depois distribuída a es-
te ou a outros de diferentes formas


  • de seguro-desemprego a novas pro-
    fissões, e mais amplamente a qual-
    quer situação de emprego descontí-
    nuo, não ocorrerá sem levantar
    algumas questões. Por exemplo, na
    arte contemporânea, em que a noção
    de qualificação – sobre a qual pode se
    basear um salário para evitar ser re-


munerado por peça – é inexistente e
em que a validação do trabalho artís-
tico é uma prerrogativa de uma esfe-
ra institucional composta por escolas
de arte, pelo mercado e pelo Estado.
Entretanto, há um interesse parti-
cular em reivindicar um salário para
os artistas/autores. Eles constituem
uma categoria exemplar da invisibili-
dade do trabalho e serviram de ponto
de apoio ao desmantelamento de ins-
tituições do salário consideradas
alienantes e anacrônicas. É, entre ou-
tras coisas, com base na figura do ar-
tista que se efetuou a desqualificação
da crítica social em benefício de uma
crítica preocupada com o desenvolvi-
mento dos indivíduos e do sentido de
seu trabalho concreto. Questionar o
salário partindo de um campo a prio-
ri hostil tem um sentido: isso permite
voltar para a raiz da crítica social e
atualizar as ref lexões sobre as bases
emancipadoras da “Sécu” [Sécurité
Sociale – Seguridade Social].
Resta saber como inserir novos
trabalhadores das artes e da cultura
no regime de intermitência. Concre-
tamente, isso poderia passar por um
“novo modelo” de seguro-desempre-
go tal como propõe a CIP, que preco-
niza a criação de um anexo único
para todos os setores que praticam o
emprego descontínuo, com um pata-
mar de entrada fixado a zero hora
trabalhada e uma renda garantida
equivalente ao salário mínimo inter-
profissional de crescimento (Smic, o
salário mínimo francês).^3 Se não le-
va em conta a qualificação, esse mo-
delo tem o mérito de proclamar um
direito universal e incondicional ao
salário socializado e de exigir a ges-
tão do seguro-desemprego pelos
próprios interessados.

DEIXAR DE LADO AS EMPRESAS
Uma vez estabelecido esse quadro,
dispositivos mais leves poderão ser
introduzidos em categorias profissio-
nais para gerar a qualificação dos
trabalhadores do setor das artes. De
fato, para que o salário continuado
não seja apenas uma rede de segu-
rança nem a manifestação de uma
“solidariedade interprofissional” en-
tre supostos trabalhadores “realmen-
te” produtivos e os outros, ainda seria
preciso que se baseasse em uma qua-
lificação pessoal, suporte de direitos
políticos. Nas artes visuais, por exem-
plo, um júri inspirado pela comissão
profissional da Sécurité Sociale dos
artistas/autores poderia ser encarre-
gada de ref letir sobre a validação do
trabalho artístico e sobre a progres-
são do salário dos artistas em função
de critérios não capitalistas (antigui-
dade no cargo, compromisso na prá-
tica, projetos passados etc.).
Em todos os casos, a consolidação
do regime de intermitência deverá ser
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