28 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020
UM ESCRITOR, UM PAÍS
Babel jovem
e inocente
Autor entre os mais oníricos de seu tempo, Yan Lianke
se apossa dos males da sociedade chinesa, correndo
o risco de ser censurado em seu próprio país, mas não
cede nem um pouco em seu comprometimento, humor e
escrita. Aqueles que revelam a verdade – ou simplesmente
a realidade – pagam por isso às vezes com a morte, como
neste conto especialmente escrito para o
Le Monde Diplomatique
POR YAN LIANKE*
“O
rapaz ia à cidade.
Em direção ao leste, ao
nascer do dia seguinte.
As férias de verão jor-
ravam como suor. Na véspera, a últi-
ma aula fora muito simples, tal como
um problema de matemática resolvi-
do desde a leitura do enunciado.
Fim da aula.
As férias começavam.
O rapaz se lançou para fora da sa-
la de aula. Na entrada da escola, o
mural de avisos estava coberto de pe-
quenos papéis. Em um deles estava
escrito: “Querida X X X, eu te amo tan-
to que a cada noite sou obrigado a me
aliviar sozinho”. Em um outro:
“Zhang, você ainda não me devolveu
os três yuans que te emprestei este
semestre!”. Entre todos esses papéis,
havia um, vermelho-vivo, no entanto
escrito com uma caneta esferográfica
de tinta preta e grossa, com uma fra-
se desconhecida, em inglês:
“I fuck your mom”.
Essa sequência de letras lhe cau-
sou o efeito de um voo de gansos sel-
vagens em sua direção. Ele levou os
pássaros para casa. Deixou a mochila
e se dirigiu ao fundo do vilarejo, à ca-
sa do professor, que estava alimen-
tando os porcos. O menino lhe entre-
gou o papel vermelho, o educador leu
e ruborizou-se antes de anunciar três
observações:
- Eu não sei direito o que significa
essa frase. Também não vale a pena ir
perguntar a outras pessoas; de qual-
quer modo, no próximo semestre vo-
cê passará a uma série superior e
aprenderá inglês.
A terceira observação foi apenas
uma recomendação insistente, como
relembrou o rapaz enquanto voltava
para casa: - Ei! Sobretudo não pergunte a
ninguém, essa frase com certeza não
é boa de escutar!
O moleque ficou com ainda mais
vontade de se informar. Mais vontade
ainda de saber o que significava
“I fuck your mom”. No dia seguinte,
decidiu ir à cidade para questionar o
professor de inglês. Levantou-se ce-
do, tomou o café da manhã que sua
mãe havia preparado, colocou no bol-
so o dinheiro que seu pai lhe dera e,
enquanto o sol erguia sua bandeira,
deixou a casa. Caminhou alguns lis,^1
chegou à rota do cume da montanha
para esperar ao pé de uma velha So-
phora por um ônibus que atendia à
zona rural. Nesse momento, um gru-
po de joaninhas passou diante dele,
tão rápido como um raio; em seguida,
algumas borboletas o rodearam. En-
tão pensou consigo que era melhor
andar. A pé pode-se ver a paisagem.
Foi então assim, tranquilamente, até
a entrada da cidade. Enfim, parecia
que o ideal o abraçava. Os prédios, as
casas novas e o pórtico sobre uma lar-
ga avenida. Restaurantes à margem,
as bancas e os feirantes espalhados.
Era bem ali seu destino. Embora es-
gotado, a ideia de encontrar logo o
professor de inglês fazia que nem sen-
tisse mais o cansaço. Tirou do bolso o
papel vermelho, deu uma olhada nele
e, verificando que o papel com a frase
“I fuck your mom” ainda estava lá,
passou pelo pórtico. Uma dezena de
metros à frente, avistou uma jovem
mulher que vendia saias. Perguntou-
-lhe se conhecia o endereço do pro-
fessor de inglês; ela respondeu-lhe
que não. No mesmo instante, um jo-
vem homem surgiu de trás dela, com
uma sacola de saias no braço, a qual
colocou no chão antes de perguntar: - É o senhor Zhao, o professor de
inglês do colégio, que você procura?
O menino arregalou os olhos. - É meu primo.
Acrescentou que era inútil procu-
rá-lo em sua casa, pois, sendo dia de
feira, o professor Zhao estaria certa-
mente na loja de eletrodomésticos
Mondial, na segunda avenida. Ele en-
sinou o rapaz a chegar lá. O garoto
hesitou e se dirigiu por fim ao ende-
reço indicado. Ao final de uma aveni-
da comprida de dois lis, encontrou a
loja. O professor de inglês estava ali
de fato. Era o proprietário e, embora
seu irmão e sua cunhada ficassem lá
habitualmente, o senhor Zhao se ins-
talava atrás do balcão durante as fé-
rias escolares. Era um homem de 40
anos, estatura média, vestindo uma
camisa branca, cabelos curtos pen-
teados com escova, calçando sapatos
de couro sujos e com marcas, um
jeans antigo, exatamente como se
apresentava no colégio. A loja era
constituída de três cômodos, as pra-
teleiras cheias de fornos elétricos,
chaleiras elétricas, lâmpadas, toma-
das etc. No chão, ao longo das pare-
des, televisores de todos os tama-
nhos, produzidos na China ou
importados. Um adolescente, um
pouco mais velho que nosso protago-
nista, ia e vinha diante do balcão,
sem ter o que fazer. O professor de in-
glês conversava com um casal de pes-
soas de idade diante de um grande
aparelho, cujo preço discutiam.
O rapaz entrou.
Permaneceu timidamente na solei-
ra da porta. Não avançou, aguardando
com paciência até que o professor e as
pessoas idosas terminassem sua con-
versa. Por fim, o casal declinou da
compra, o professor os acompanhou
até a saída, virou-se e, ao garoto que o
observava com vergonha, perguntou:
- Você quer comprar algo?
- Eu sou do colégio do burgo.
Estendeu-lhe o papel dobrado em
quatro e acrescentou: - Queria lhe perguntar o que sig-
nifica a frase escrita em inglês nesse
papel.
O professor pegou o papel, desdo-
brou-o. Ficou levemente branco, com
o rosto contraído. Perguntou ao me-
nino quem havia escrito aquilo. O ra-
paz respondeu que havia visto o bi-
lhete no dia anterior, antes de sair de
férias, no mural de recados na entra-
da da escola.
O professor o olhou bem dentro
dos olhos e fez outra pergunta:
Conto inédito de Yan Lianke exclusivo para o Le Monde Diplomatique