Clipping Banco Central (2020-08-01)

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Banco Central do Brasil


Correio Braziliense/Nacional - Cidades
sábado, 1 de agosto de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

Crônica da Cidade


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Autor: por Luiz Calcagno >>
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Estávamos em San Vicente

Meu pai tinha um coração americano. E, um ano
depois de morto, inexistente exceto na
lembrança, o velho esquerdista, carioca nascido
em Minas Gerais, segue me dando lições,
mostrando discos, sussurrando canções. A voz
suave vem da lembrança, murmurando, fora de
tom e ritmo, em um tempo diferente, em outro
lugar, uma letra desconhecida, mas, que em
breve, arrebataria o adolescente que fui. A sorte
é que, hoje, com pouco mais que o dobro da
idade, posso ouvi-lo sem as amarras do

torvelinho juvenil. Recentemente, ele passou a
cantarolar as canções do Clube da Esquina e,
também, a repetir o que falava de política,
preciso e amiúde, criando entre nós uma ponte
no tempo.

Novo Gama (GO). Em algum lugar na segunda
metade da década de 1980, a história se
desenrolava mais ou menos assim: Guerra Fria,
Chernobyl, Assembleia Constituinte, Muro de
Berlin, Cazuza, HIV, Sarney, inflação... Um
menino alheio às complicações do mundo adulto
manuseava o velho LP. A capa de papelão
desgastada nas bordas exibia os dois meninos
sentados à beira da estrada de terra. A agulha
patinava nos veios do disco de vinil, mas não
era como se ele compreendesse a voz onírica
de Milton Nascimento a despertar de um sonho
estranho. Mais de uma década depois, um
homem recorda as canções em um
estacionamento, preocupado em alcançar as
emoções em detrimento dos tons, sob o olhar
crítico do filho envergonhado.

Brasília, 2020. Com Trump, Bolsonaro, fake
news, ascensão da extrema-direita e pandemia
da covid-19, o mundo como conhecemos se
transforma de uma maneira que não podemos
prever. A caixa de som bluetooth ecoa a canção
que roda no celular. "Um gosto, vidro e corte",
entoa Milton. Uma menina, de 5 anos, come
torradas e ovo cozido mole à mesa da cozinha
enquanto escuta, talvez, sem entender. "Um
sabor de chocolate no corpo e na cidade. Um
sabor de vida e morte." O violão latino
acompanha a canção.

É graças ao homem que já não existe mais que
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