Clipping Banco Central (2020-08-01)

(Antfer) #1

Banco Central do Brasil


Revista Carta Capital/Nacional - Colunistas
sexta-feira, 31 de julho de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

poder, criou uma elite proletária, privilegiada à
custa do trabalho dos desprivilegiados. A
impressão, não se pode negar, é a de uma
gradativa e irreversível ruptura das relações de
representação, uma dissociação abissal entre
quem trabalha, do jeito e sob as condições em
que trabalha, e os representantes do trabalho.


O trabalhismo e o esquerdismo que ele
contemplava, guindado ao poder e na interação
com o grande capital, foi infiltrado e
contaminado pelo capitalismo, a ponto de os
excluídos (dos sem nada) e dos precarizados
(os escravos de nossos dias) não se
reconhecerem nele.


Tião, personagem interpretada por Carlos
Alberto Riccelli, na versão cinematográfica de
Leon Hirszman, furou a greve, apunhalou o pai,
frustrou sonhos e esperanças, mas, antes de
tudo, transmudou-se na maldição que parece
acompanhar a nossa esquerda, incapaz de
estabelecer a primazia do coletivo sobre o
individual e, a partir dela, um senso de
comunidade para todo o País.


É claro que havia uma explicação. A namorada
de Tião estava grávida, ele precisava do
dinheiro. O drama de Guarnieri descarna uma
inevitável submissão existencial do trabalho,
que, entre nós, abaixo da linha do Equador,
transformou-se numa espécie de doença
brasileira. Uma doença que, no seu estágio
mais avançado, desperta compreensíveis e
sempre odiosas ambições. As mesmas que
desunem “as esquerdas” nas próximas eleições
municipais, sobretudo em São Paulo, na
antevéspera da disputa presidencial de 2022.
Ambições que inspiram o delírio de hegemonia
e a cegueira deliberada, que negam espaço
para novos líderes, que fecham portas, que
impedem a reinvenção obrigatória do campo
progressista no Brasil.


As projeções políticas da esquerda, se
quiserem sobreviver, tanto mais depois dos
ataques impiedosos a que se submeteram nos
últimos anos (em alguns casos
merecidamente), não podem ter umbigo. A
esquerda precisa escolher os mais aptos, os
ungidos de baixo para cima, precisa de mais
projeto e de menos retórica, precisa entender e
domesticar o capital, porque, como disse
Emicida, o capitalismo não é um quiz, não é
possível escolher – senão sob revolução – se o
aceitamos ou descartamos.

Não é possível, sob o regime de produção
capitalista, distribuir renda sem deslocar e
gerar riquezas, sem ordenar a atividade
produtiva, a lucratividade, o trabalho e a sua
remuneração, em meio a toda sorte de
incentivos perversos. Também não será
possível edificar uma nação pujante, de
dimensões continentais, com uma economia de
quitandas. O trabalho precisa reequilibrar as
relações com o capital, mas não prescinde
dele.

Uber, Rapi, Ifood, Loggi e tantas outras
empresas gerenciam a vida do novo
proletariado, por meio de um algoritmo
impenetrável e literalmente desumano, que
determina o ritmo e o valor do trabalho. O
avanço das novas tecnologias, o crescimento
populacional desordenado, as guerras
comerciais entre potencias hegemônicas e,
mais que isso, a globalização desenfreada,
garantem que milhões, talvez bilhões, não
tenham nenhuma utilidade econômica para
além do consumo. Eles ainda não usam black-
tie e nós temos feito pouco, muito pouco, para
mudar isso.

Assuntos e Palavras-Chave: Cenário Político-
Econômico - Colunistas
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