National Geographic - Portugal - Edição 233 (2020-08)

(Antfer) #1
ACRISEDAÁGUANAÍNDIA 51

“Nem me fale nisso”, diz Priyanka Borpuja-
ri, jornalista independente que se junta à nossa
caminhada pela pitoresca bacia hidrográfica do
rio Chambal, localizado na região do Rajastão e
Madhya Pradesh. “Sou a autora de serviço desig-
nada para os ‘assuntos de mulheres de cor’ em
muitas conferências jornalísticas. Não posso ser
outra coisa qualquer? Jornalista de economia?
Analista política? Correspondente estrangeira?”
Antes de chegarmos às colinas de arenito cor-
-de-rosa de Chambal, fazemos uma pausa numa
exploração de arroz. É exclusivamente gerida por
mulheres. É uma situação interessante, numa Ín-
dia encharcada de testosterona.
“Gerimos as coisas aqui. É uma necessidade”,
diz Saroj Devi Yadav, uma matriarca rija de 62
anos. “Os homens estão a trabalhar na cidade.”
O marido de Saroj faz entregas de comida para
um restaurante na distante cidade de Jaipur. Saroj
e as duas netas adolescentes ficam em casa para
regar os campos. Cortam forragem. Cuidam das
vacas e dos búfalos. Organizam carregamentos
de leite para a cidade em latas de alumínio presas


a motociclos. Passa-se o mesmo nas explorações
vizinhas. Quando o Sol se põe sobre o seu minús-
culo domínio verde, Saroj partilha o chá e o caril.
“Casei-me com 13 anos”, diz. “As coisas eram
diferentes naquela altura. Ninguém perguntava
nada às raparigas. As raparigas têm muito mais
oportunidades agora. Casam-se mais tarde.”
É uma história antiga: as perturbações geradas
pela urbanização. O choque entre diferentes pes-
soas em megacidades em crescimento derruba
barreiras velhas como o tempo. Na Índia, porém,
onde dois terços da mão-de-obra é feminina, a
percentagem de mulheres indianas proprietárias
de terras mal atinge 13%. As mulheres carregam
a água nas zonas rurais, mas os recursos naturais
da Índia permanecem sob controlo dos homens.
As águas do Chambal correm límpidas. O rio
é um santuário para os gaviais, os crocodilídeos
de focinho comprido da Índia. A montanhosa
região a montante do rio foi em tempos lar da
fora-da-lei mais famosa da Índia, Phoolan Devi,
uma espécie de Robin dos Bosques que, suposta-
mente, matou 20 pistoleiros rivais num tiroteio.
“Então!”, grita Priyanka Borpujari.
Um homem gordo ao volante de um carro caro,
trava à nossa frente, bloqueando-nos o caminho.
Filma-nos pela janela com um telefone: duas pes-
soas entre milhões que vagueiam pelas bermas
das estradas da Índia. Priyanka levanta a mão.
“Pediu-nos autorização?”, pergunta-lhe.
“Não sabia que precisava de autorização”, bufa ele.
Priyanka caminha até junto da janela dele.
Lança-lhe um olhar furioso e diz-lhe serenamen-
te: “Pois, precisa de autorização.”

O Betwa: mineiros de areia
CAMINHO PARA LESTE DURANTE MESES. Atravesso
o extenso centro dourado das tardes indianas.
A minha rota de GPS desenrola-se numa re-
gião de vacas magras, atravessando Madhya
Pradesh e o Uttar Pradesh, com uma meada de
povoados tão esquecidos pelo tempo que não
viam um estrangeiro desde a independência,
em 1947. Durmo em mesas de tábuas em restau-
rantes à beira da estrada chamados dhabas, so-
bre camas de corda em casa de agricultores ou
em mesquitas e templos hindus. Sem sequer me
aperceber, pois as planícies fluviais enrugadas
da Índia foram alisadas por milénios de erosão,
avanço gradualmente deumabaciahidrográfica
para outra. São dezenas. Agora,assuaságuasali-
mentam o Ganges. (Continua na pg. 56)
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