POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO (do pensamento único à consciência universal) Milton Santos

(mariadeathaydes) #1

independentemente e acima dos partidos e das organizações. Tal cultura realiza-se segundo níveis
mais baixos de técnicas, de capital e de organização, daí suas formas típicas de criação. Isto seria,
aparentemente, uma fraqueza, mas na realidade é uma força, já que se realiza, desse modo, uma
integração orgânica com o território dos pobres e o seu conteúdo humano. Daí a expressividade dos
seus símbolos, manifestados na fala, na música e na riqueza das formas de intercurso e solidariedade
entre as pessoas. E tudo isso evolui de modo inseparável, o que assegura a permanência do
movimento.
A cultura de massas produz certamente símbolos. Mas estes, direta ou indiretamente ao
serviço do poder ou do mercado, são, a cada vez, fixos. Frente ao movimento social e no objetivo de
não parecerem envelhecidos, são substituídos, mas por uma outra simbologia também fixa: o que
vem de cima está sempre morrendo e pode, por antecipação, já ser visto como cadáver desde o seu
nascimento. É essa a simbologia ideológica da cultura de massas.
Já os símbolos “de baixo”, produtos da cultura popular, são portadores da verdade da
existência e reveladores do próprio movimento da sociedade.


As condições empíricas da mutação

É a partir de premissas como essas que se pode pensar uma reemergência das massas.
Para isso devem contribuir, a partir das migrações políticas ou econômicas, a ampliação da vocação
atual para a mistura intercontinental e intranacional de povos, religiões, gostos, assim como a
tendência crescente à aglomeração da população em alguns lugares, essa urbanização concentrada
já revelada nos últimos vinte anos.
Da combinação dessas duas tendências pode-se supor que o processo iniciado há meio
século levará a uma verdadeira colorização do Norte, à “infomalização” de parte de sua economia e
de suas relações sociais e à generalização de certo esquema dual presente nos países
subdesenvolvidos do Sul e agora ainda mais evidente.
Tal sociedade e tal economia urbana dual (mas não dualista) conduzirão a duas formas
imbricadas de acumulação, duas formas de divisão do trabalho e duas lógicas urbanas distintas e
associadas, tendo como base de operação um mesmo lugar. O fenômeno já entrevisto de uma
divisão do trabalho por cima e de uma outra por baixo tenderá a ser reforçar. A primeira prende-se ao
uso obediente das técnicas da racionalidade hegemônica, enquanto a segunda é fundada na
redescoberta cotidiana das combinações que permitem a vida e, segundo os lugares, operam em
diferentes graus de qualidade e de quantidade.
Da divisão do trabalho por cima cria-se uma solidariedade gerada de fora e dependente
de vetores verticais e de relações pragmáticas freqüentemente longínquas. A racionalidade é mantida
à custa de normas férreas, exclusivas, implacáveis, radicais. Sem obediência cega não há eficácia.
Na divisão do trabalho por baixo, o que se produz é uma solidariedade criada de dentro e dependente
de vetores horizontais cimentados no território e na cultura locais. Aqui são as relações de
proximidade que avultam, este é o domínio da flexibilidade tropical com a adaptabilidade extrema dos
atores, uma adaptabilidade endógena. A cada movimento novo, há um novo reequilíbrio em favor da
sociedade local e regulado por ela.
A divisão do trabalho por cima é uma campo de maior velocidade. Nela, a rigidez das
normas econômicas (privadas e públicas) impede a política. Por baixo há maior dinamismo intrínseco,

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