Como temia a Missão Latino-Americana de Kennedy, os êxitos dos programas de melhoria da
saúde e do padrão de vida ajudaram a disseminar “a idéia castrista de resolver os problemas à sua
própria maneira”, estimulando “os pobres e os desprivilegiados” da região mais desigual do mundo
a “exigir oportunidades de vida decente”, com perigosos efeitos também em outros lugares.
Registros documentais abundantes e irresistíveis, juntamente com ações consistentes baseadas em
motivos absolutamente racionais, dão considerável credibilidade a essa apreciação. Para avaliar a
afirmação de que essas políticas nascem de preocupações com os direitos humanos e a democracia,
um breve olhar para esses registros é mais do que suficiente, pelo menos para quem que tem
alguma pretensão à seriedade.
É impróprio, no entanto, pensar sobre, ou até mesmo lembrar, esses fatos quando celebramos
o triunfo dos “valores americanos”. Tampouco devemos lembrar que Clinton, inspirado pela mesma
paixão pelo livre comércio, “pressionou o México a firmar um acordo que acabará com a exportação
de tomates baratos para os Estados Unidos”; um presente aos produtores da Flórida que custa ao
México cerca de 800 milhões de dólares anuais e que viola tanto o NAFTA quanto os acordos da
OMC (embora apenas “em espírito”, porque se tratou de um puro jogo de poder que não requeria
nenhuma tarifa oficial). O governo explicou sua decisão sem rodeios: os tomates mexicanos são
mais baratos e preferidos pelos consumidores americanos. O livre mercado está funcionando, mas
com o resultado errado. Ou talvez os tomates sejam também uma ameaça à segurança naciona1.^28
É certo, tomates e telecomunicações têm muito pouco em comum. Quaisquer favores que
Clinton deva aos produtores de tomate da Flórida nada significam comparados às exigências da
indústria de telecomunicações, mesmo sem considerar aquilo que Thomas Ferguson descreve como
“o mais bem guardado segredo das eleições de 1996”: o de que, “mais do que qualquer outro grupo
específico foi o setor de telecomunicações que salvou Bill Clinton”, beneficiário de vultosas
contribuições de campanha desse “setor espantosamente lucrativo”. A Lei das Telecomunicações de
1996 e o acordo da OMC são, em certo sentido, cartões de agradecimento, ainda que o resultado
provavelmente não fosse muito diferente se um outro mix de liberalidades houvesse sido escolhido
pelo mundo empresarial, na época vivendo o que Business Week acabara de qualificar como lucros
“espetaculares”, uma nova “Festa-Surpresa para a América das sociedades anônimas”.^29
Destaques entre as verdades que não devem ser lembradas são algumas que já mencionamos:
o balanço do “inflexível individualismo reaganista” e do “evangelho do livre mercado” apregoado (aos
pobres e indefesos) enquanto o protecionismo se alçava a alturas sem precedentes e o governo
despejava fundos públicos com singular generosidade nas indústrias de alta tecnologia. Aqui
começamos a atingir a essência do problema. As razões do ceticismo para com a “paixão” que
acabamos de analisar são bastante válidas, mas não são mais que uma nota de pé de página da
verdadeira história: como foi que as empresas norte-americanas chegaram à situação de poder
controlar os mercados internacionais, inspirando a atual celebração dos “valores americanos”.
Mas esta, também, é uma história mais longa, que nos diz muito sobre o mundo
contemporâneo: a realidade social e econômica e os grilhões das ideologias e das doutrinas,
incluindo aquelas construídas para infundir desesperança, resignação e desespero.
Publicado originalmente em Z. março de 199 7.