A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1
194 / A loucura da razão econômica

estranhar uns aos outros. Isso se torna ainda mais repulsivo quando se mistura ao
racismo, às discriminações de gênero e de orientação sexual, às hostilidades reli­
giosas, étnicas ou sexuais no mercado de trabalho (divisões que, historicamente, o
capital promove com avidez). Concorrência aguda (sob condições de desemprego
disseminado e maior integração espacial das forças de trabalho do mundo) está
intensificando essas divisões e tensões no interior da força de trabalho, com conse­
quências políticas previsíveis, particularmente em situações em que as solidarieda-
des sociais anteriores se dissolveram por causa da desindustrialização. Foram esses,
por exemplo, os sentimentos que D onaldT rum p soube explorar tão bem em 2016,
em sua campanha à presidência dos Estados Unidos.
A alienação no processo de realização tom a diversas formas e muitas vezes é
um a faca de dois gumes. O estado das vontades, necessidades e desejos está sempre
na origem da demanda. M arx considerava, sem ironia, que a criação de novas von­
tades e necessidades era parte da missão civilizatória do capital39. E difícil contestar
essa opinião quando consideramos, por exemplo, todos os valores de uso que agora
podem ser mobilizados para prolongar a expectativa de vida das pessoas, que nos
primordios do capitalismo era de 35 anos em média e hoje, em muitas regiões do
m undo, é de setenta anos ou mais. O capital produz um a cornucopia de valores de
uso a partir da qual as pessoas podem criar relações sociais e formas não alienadas
de estar na natureza e umas com as outras. A potencialidade está lá. O mundo é
repleto de brechas com espaços heterotópicos em que grupos buscam, em meio a
um mar de alienação, construir modos não alienados de viver e de ser. As aliena­
ções experimentadas na produção podem ser recuperadas por meio do consumo
compensatório de valores de uso que melhoram a qualidade da vida cotidiana40.
Por outro lado, as vontades, necessidades e desejos do complexo militar-industrial,
do lobby armamentista ou da indústria automobilística foram e continuam a ser
fontes poderosas de dem anda agregada, projetada pela influência corporativa sobre
o aparato estatal e pelas escolhas impostas de estilo de vida. Suas contribuições ao
bem-estar social são no mínimo dúbias. A base econômica de uma cidade como
São Paulo é uma indústria automobilística que produz veículos que ficam horas
parados em engarrafamentos, entupindo ruas, cuspindo poluentes e isolando indi­
víduos uns dos outros. Q uão saudável é essa economia?
O que fazer com os carros é uma das questões cruciais de nosso tempo, e ninguém
parece muito disposto a discuti-la (exceto em termos de melhor gestão dos fluxos por


39 Ibidem, p. 283-4.
40 André Gorz, Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica (trad. Ana Montoia, São PauLo,
Annablume, 2003); sobre os limites do consumismo compensatório, ver Karl Marx, Grundrisse.
cit., p. 207 e seg.
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