204 / A loucura da razáo econômica
M inha intenção aqui não é sugerir que o capital às vezes cede a um instinto
primordial de destruir o que quer que ele tenha construído, com o algumas crianças
que parecem adorar pisotear os castelos de areia cuidadosamente construídos por
outras crianças. Pois, para Marx, o que interessava era mostrar que aquilo que na
história do capitalismo parecia (ou era apresentado como) um ato do destino ou
dos deuses era de fato produto do próprio capital. M as, para tanto, ele precisava de
um aparato conceituai alternativo. Por exemplo, o m odo de produção capitalista
precisa reconhecer, escreveu Marx, que um a “desvalorização do dinheiro crediti
cio [...] faria estremecer todas as relações existentes”. O s bancos, como sabemos
bem, precisam ser socorridos custe o que custar. “ Sacrifica-se, portanto, o valor das
mercadorias para assegurar a existência imaginária e autônom a desse valor no di
nheiro. C om o valor monetário, ele só fica assegurado enquanto estiver assegurado
o dinheiro.” A inflação, com o também sabemos muito bem, precisa ser controlada
a todo custo. “Por uns poucos milhões em dinheiro, é preciso sacrificar, portanto,
muitos milhões de mercadorias, o que é inevitável na produção capitalista e consti
tui um a de suas belezas.”* 2 Valores de uso são sacrificados e destruídos independen
temente da necessidade social. Q uão insano é isso?
O capital, como defendemos aqui, é valor em movimento. N o processo de
circulação do capital surgem, periodicamente, bloqueios. O capital permanece “pa
ralisado num a das fases de sua reprodução, já que não pode completar sua meta
morfose”. N a crise que se sucede:
todos têm de vender e não conseguem fazê-lo e, ainda assim, são obrigados a vender
para pagar [...]. O capital já investido está então, de fato, desocupado em grandes quan
tidades, pois o processo de reprodução está estagnado. As fábricas deixam de funcionar,
as matérias-primas se acumulam, os1’ produtos acabados inundam, como mercadorias,
o mercado. Nada é mais errôneo, pois, do que culpar a escassez de capital produtivo
por essa situação. E justamente nessas épocas que se apresenta uma superabundâncía
de capital produtivo, em parte com relação à escala normal, porém temporariamente
reduzida, da reprodução, em parte com relação ao consumo paralisado.3
Essa é a loucura que vivenciamos repetidas vezes nos últimos quarenta anos.
C apital excedente e um a massa cada vez maior de mão de obra excedente e des
cartável repousam lado a lado, sem que haja nenhuma maneira de uni-los para
troca nas sociedades arcaicas”, em Sociologia e antropologia (trad. Paulo Neves, São Paulo, Cosac
& Naify, 2003), p. 238-40.
2 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 574.
3 Ibidem, p. 540.