88 / A loucura da razão econômica
o entesourador procura atingir conservando seu dinheiro fora da circulação, é atingido
pelo capitalista, que, mais inteligente, lança sempre o dinheiro de novo em circulação.19
E isso ele só pode realizar se houver um sistema de crédito ativo e um mercado
de dinheiro aberto. Marx toca levemente nesse problema no Livro I d’O capital: “O
papel de credor ou devedor resulta [...] da circulação simples de mercadorias”. Essa
relação está implícita na troca mercantil. Logo em seguida, porém, Marx faz uma
alusão sinistra ao fato de que esse papel “reflete aqui apenas o antagonismo entre
condições econômicas de existência mais profundas”20. Não fica claro no texto o
que seria esse antagonismo mais profundo. Estaria Marx se referindo à dialética
oculta da relação entre valor e antivalor? Gosto de pensar que sim.
Relações entre devedores e credores precedem em muito a ascensão do capital
como modo de produção dominante. No entanto, a questão para Marx, e para
nós, assim como nos casos da renda e do lucro do capital comercial, é compreen
der como essa relação dívida-crédito é perpetuada e transformada em força motriz
do valor em movimento, e com quais consequências para a história do capital.
O desenvolvimento da microfinança na India, por exemplo, gerou cerca de 12
milhões de indivíduos obrigados a produzir todo valor que puderem para saldar
empréstimos. Se não conseguirem liquidá-los, ou se ativamente se recusarem a
pagá-los por convicções políticas, seus bens (em geral terrenos e imóveis) sofrem
execuções hipotecárias (o famoso truque do subprime)21. Sobrecarregar com dívidas
populações vulneráveis e marginalizadas é, em suma, uma maneira de disciplinar os
mutuários para que se tornem trabalhadores produtivos (“produtivo” definido aqui
como tudo o que produz valor passível de ser apropriado pelo capital na forma de
taxas de juros exorbitantes). Mais perto de nós, as liberdades futuras de estudantes
ou proprietários que tomaram empréstimos para pagar seus estudos ou comprar
uma casa própria estão seriamente comprometidas. Não é por acaso que essa forma
de obter produção de valor surgiu num momento em que o capital enfrenta cada
vez mais dificuldades para organizar a produção de valor segundo os meios conven
cionais. Retornaremos a essa questão na conclusão.
Por outro lado, meu próprio fundo de pensão está investido em dívida com a
crença de que essa dívida será paga22. Mas, se esse futuro não se materializar, então
o valor (fictício) de meu fundo de pensão desaparecerá no buraco negro do anti-
19 Idem, O capital, Livro I, cit., p. 229.
20 Ibidem, p. 208 e 209.
21 Ananya Roy, Poverty Capital: Microfinance and the Making o f Development (Nova York, Roudedge,
2011 ).
22 Robin Blackburn, Banking on Death: Or Investing in Life (Londres, Verso, 2004).