A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1
98 / A loucura da razão econômica

O poder do antivalor precisa ser confrontado com a teoria do valor. Se, como
suspeito, esse é o “antagonismo mais profundo” oculto nas entranhas do capital
que circula como valor em movimento, tornar essa contradição legível é um passo
importante para enfrentar a servidão por divida - que parece cada vez mais capaz
de ditar não apenas nossas relações sociais e nosso bem-estar contemporâneos, mas
também nossas perspectivas de vida futura. O fato de que tantos considerem mais
fácil vislumbrar o fim do mundo do que o fim do capitalismo tem a ver com o
fato de que o futuro da acumulação de capital está enterrado sob uma montanha
de dívidas como antivalor. Para muitos, a única esperança é que uma intervenção
externa — algo como um evento apocalíptico - nos salve. Ela não nos salvará. A
única coisa que pode nos salvar é o desmonte, ou a demolição, da montanha de
dívidas que dita o nosso futuro.
O antivalor sinaliza o potencial para o colapso na continuidade da circula­
ção do capital. Ele prefigura como as tendências do capital à crise podem assumir
formas diferentes e se deslocar de um momento (por exemplo, produção) para
outro (por exemplo, realização)38. Esse insight é crucial. Infelizmente, ele é muitas
vezes ignorado. As crises, diz Marx (ao contrário do que se costuma pensar), não
significam necessariamente o fim do capitalismo, mas preparam o terreno para
a sua renovação. E aqui que fica mais evidente o papel dialético do antivalor na
reprodução do capital. As crises “são sempre apenas violentas soluções momen­
tâneas das contradições existentes, erupções violentas que restabelecem por um
momento o equilíbrio perturbado”39. Mas a reconstrução do capital é insegura e
tem limites. Uma acumulação de dívidas (reivindicações sobre a produção futura
de valor) pode sobrepujar a capacidade de produzir e realizar valor e mais-valor no
futuro. Ainda que as dívidas sejam devidamente resgatadas, a obrigação de quitá-
-las compromete futuros alternativos. A servidão por dívida agrilhoa o futuro das
pessoas, assim como de economias inteiras40. Esse é um tema a que retornaremos
à guisa de conclusão.


38 David Harvey, O enigma do capital(trad. João Alexandre Peschanski, São Paulo, Boitempo, 2011),
cap. 5.
39 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 289.
40 Michael Hudson, “The Road to Debt Deflation, Debt Peonage, and Neofeudalism”, workingpa­
p era. 709, Annandale-on-Hudson, Levy Economics Institute of Bard College, fev. 2012; Killing
the Host: How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy (Baskerville, Islet, 2015).
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