Adega - Edição 178 (2020-08)

(Antfer) #1

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“PELA GLÓRIA DA BORGONHA!” É COM
uma taça de Clos de Vougeot que a eterna Julia
Child, já velhinha, encerra a sua participação
no programa Good Morning America, em


  1. Ela compartilha uma receita de coq au
    vin, com o inebriado apresentador – tonto, não
    pelo vinho, mas pelo sabor do prato que, pouco
    antes, tinha visto a mestre preparar. “É simples e
    absolutamente delicioso”, comenta. Ela concorda:
    “Sim, é realmente muito simples”.
    Diz a história que o galo ao vinho teria nascido
    numa pequena estalagem por onde Napoleão
    Bonaparte passara, inesperadamente, durante
    uma das suas viagens. Surpresos com a visita
    do imperador e sem nada a altura para servir
    (entendedores entenderão), mataram um galo
    velho, juntaram a ele legumes, cebolas, ervas e
    vinho. O conjunto então cozinhou leeeentamente
    numa só panela e foi oferecido ao comandante


francês, horas depois.
Extasiado com o que comera, Napoleão levou
o prato para corte e o coq au vin se tornou um
clássico da gastronomia mais celebrada do mundo,
especialmente quando foi tratado como obra de
arte, na Borgonha. Apesar, vale repetir, da enorme
simplicidade do preparo.
Na verdade, o coq au vin resume de forma
precisa a essência da boa gastronomia –
especialmente a francesa.
Aquela feita sem pressa, com a alma na
beira do fogão, nariz apurado e mão dedicadas
dispostas a fazer cortes minuciosos, para chegar
ao acabamento perfeito dos legumes cozidos no
ponto certo, do bacon que derrete sem fritar no
calor, da cebola caramelizada de forma impecável.
Claro, há alguma técnica para tudo isso, mas
nada que não seja adquirido naturalmente com
algumas horas de voo.

Por aqui, os mineiros e a sua cozinha
maravilhosa sabem muito bem disso. Vá, por
exemplo, ao afamado Xapuri, em Belo Horizonte,
e coma a galinha ao molho pardo da D. Nelsa
Trombino. Depois a procure (ela adora uma
prosa), caso a mestre esteja por lá. E vai ouvir dela,
se perguntada sobre o segredo da receita: “Não
tem nada demais aqui, meu filho... Só um poquin
de paciência e cuidado para o sangue não talhar”.
O sangue de um galo velho ou de um franguin
ou galinha caipira vai para panela para espessar o
molho feito com o vinho. É a bebida, no entanto,
que, além perfumar e entregar tudo o que ele
tem de bom para o prato, amolece a carne da ave,
fazendo-a derreter ao toque do garfo.
É por isso que, mais do que nunca, aqui vale a
máxima do vinho na cozinha: se você não beberia
um determinado rótulo, não mande-o para a
panela. Muito menos num prato cuja grande

virtude é o equilíbrio. Para chegar até ele, vale
a dica, melhor usar um vinho pouco alcoólico,
como um Borgonha.
Mas eu vou usar um Bor-go-nha na panela?
Sim, vai. Escolha uma vinícola, use o seu vinho
mais jovem para a receita e, depois, beba um de
safra boa e mais antiga. É infalível.
Assim como foi a resposta do imperador Julio
César ao cozinheiro francês que, indignado com a
ocupação romana na região de Auvergne, durante
as Guerras Gálicas, enviou-lhe um galo magro e
agressivo, para demonstrar a garra dos donos da terra.
Ele, então, foi convidado para jantar com Julio
Cesar. E comeu um frango banhado com um molho
grosso e bem vermelho. Ao perguntar o que era,
ouviu do romano, com a sua postura petulante de
sempre: era ave que ganhara cozida lentamente no
vinho, ao estilo francês, como se deve fazer com um
galo velho, cansado de guerra.

Di z a história que o galo ao vinho nasceu numa estalagem, durante inesperada passagem
de Napoleão Bonaparte e não havia nada a altura para servi-lo (entendedores entenderão)
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