Sexta-feira,21deagostode2020|Valor| 15
Desigualdadessão,
sobretudo,
consequência de
clivagens históricas
quesereforçame se
reorganizam
cotidianamente
dro Ferreira de Souzae SergeiSoares,“Desi-
gualdadede Rendano Brasilde 2012a2019”
(BlogDados, 2020).Ao mesmotempo, àpro-
teção social era relegado um papel cada vez
maissecundário, comreduçãode direitos so-
ciaisecortesorçamentários.
Ocenárionão émuito diferentepara as desi-
gualdadesraciaisede gênero.Aprimeiradéca-
da desteséculofoi marcadapor transformações
quereduziramsistematicamenteasdesigualda-
des entrebrancosenegros,homensemulheres.
Entretanto,acriseque se abateusobreaecono-
mia, de um modogeral,esobre omercadode
trabalho,mais especificamente,se fez sentirde
formamuitomais intensaentreos mais jovens,
osnegroseasmulheres.
Em2015,ataxadedesocupaçãofemininaera
de 11,6%—enquantoa dos homensfoi de 7,8%.
No caso das mulheresnegras,a proporçãoche-
gou a13,3%,ados homensnegros,8,5%.Em
2019,14,1%das mulherese 9,6% dos homens
com mais de 14 anos estavam desocupados.En-
trehomensemulheresnegros,essesvaloresche-
garama16,8% e11,2%,respectivamente.Houve
tambémum crescimentono gap racialda pro-
porçãode jovensde 20 a29que não trabalham
nemestudamnopaís.
É nessecenáriode inflexãonumprocessode re-
duçãodedesigualdadesqueseconfirmaoprimei-
rocasodacovid-19noBrasil,dandoinícioàsmedi-
das de distanciamento socialque, por sua vez,es-
cancaramas clivagens históricas do mercado de
trabalho no país. A classificação, por partedo go-
verno,desetoreseconômicos entreessenciais e
não essenciaisnão apenasreforçaram,mas tam-
bém reorganizaram o padrãodas desigualdades
raciaisedegênero.Osprimeiros estudos feitospe-
laRededePesquisaSolidáriamostraramqueavul-
nerabilidade do emprego e da rendaao longoda
pandemiadependiafortementedeumacombina-
ção entreaestabilidade do vínculoeograu de fra-
gilização dos setores econômicospor contada
pandemia(RededePesquisaSolidária,Boletim3).
Destaforma,avulnerabilidadepassaaatin-
gir também gruposoutroraestáveis e de ele-
vadostatussocieconômico, agregando um
novoperfil de vulneráveis no mercado de tra-
balho(brancosmais escolarizados).Homens
estãomaispresentes em setoresessenciaise
mulheres nos setores não essenciais, ao passo
que brancas(os) têm vínculosmaisestáveis
queasnegras(os).Apesar disso,os“novosvul-
neráveis”estão em posições menosameaça-
dasdoqueos“historicamentevulneráveis”.
Oavançodadoençaampliaodebatepúblico
sobreoimpacto na vida dos trabalhadores e,
em especial, sobreadefinição dos setores es-
senciaisenãoessenciais,quepassamaserobje-
to de disputa política. Avulnerabilidade assu-
me significados que dependem de outros con-
tornos que não apenas a estrutura do mercado
de trabalho ou aatividade econômica, mas
tambémdaformacomoanoçãode“essencial”
passou a ser disputada e apropriada no seio da
políticapúblicadecombateàpandemia.
Apartirdadivulgaçãodosdadosdaprimei-
raPnad-Covid,emjunho,foipossívelcaptarde
formamaisdetalhadaas consequências da
pandemiasobreomercadodetrabalho.Nova-
mentechamaatenção as clivagens raciaisede
gênero em relação a doisextremos. Por um la-
do, a buscapor trabalho, demarcando os mais
vulneráveis, porqueexpostos ao contágio.E,
poroutro,aadaptaçãoaotrabalhoremoto.
Dentreos motivosde não estarprocurando
emprego,26,7%dosinativosdisseramquenãoo
faziamem razãoda pandemia.Esse percentual,
contudo,chega a33,9% entreos homensnegros
e a29% mulheresnegras.Para homense mulhe-
res brancas,essesvaloressão de 22,8%e20,2%,
respectivamente.Entreas mulheres,especial-
mente,destacou-setambémaresposta“cuidar
de afazeresdomésticoseparentes”(14,8%para
asbrancase17,7%paraasnegras).
Para oteletrabalho, eramo dobro de bran-
cosdoquedenegrosnessamodalidade.Entre
as pessoas com ensino superior, o percentual
de teletrabalho difere poucosegundoa raça:
40% entrebrancose 34% entrenegros. Mas,
nessecaso, adesigualdadede raça reverbera a
histórica desigualdade educacional, porque
enquanto um em cada três brancos têm ensi-
nosuperior,sãoumemcadaseisnegros.
Por fim, é importante indagar como os padrões
de desigualdadesse alteram em virtude das políti-
cas emergenciais equais são as possibilidadesfu-
turas.O auxílioemergencial, por focalizar eprote-
ger os mais vulneráveis, acabou beneficiando em
maiormedida os negros(e especialmenteas mu-
lheresnegras),quesãoamaioriadaspessoasemsi-
tuaçãode pobreza e vulnerabilidade. Também
contribuiuparaqueataxadepobrezanãochegas-
se a30%, que seria trágico.Noentanto,outrasini-
ciativas(comoo crédito às empresase o Programa
EmergencialdePreservaçãodoEmpregoedaRen-
da) têm sido insuficientes para garantira manu-
tenção da renda dos estratosmédios. Esses experi-
mentaramperdasde10%a20%desuasrendasdo-
miciliares, que, mesmocom tais políticas,não fo-
ramcompensadas.
Tudo que éemergencialétambém,por defi-
nição,passageiro.Oauxílioemergencialéinsus-
tentável enquantopolíticade longoprazo.O
mercadode trabalho,extremamentedeteriora-
do,devetersuaatuaçãomarcadaporpassoslen-
tos epela informalidade.Findooauxílioesem
nadacolocadono lugar, apobrezapodereto-
mar o dramáticoprotagonismodos anos 1990,
atingindo30% da população(Redede Pesquisa
Solidária,Boletim,14). Asoluçãoimediatapara
evitaressa tragédiapassapela necessidadede
um programade transferênciade rendaque,
gradativamente,permitafazeratransiçãopara
um modelomais bem-acabadode proteçãoso-
cial não contributiva,conformeapontaoartigo
de LeticiaBartholo,Luiz Paiva ePedroSouza,
“AuxílioEmergencial,TransiçãoeFuturo”, publi-
cadonoValor,em24/6/2020.
Maspassa,também,pelanecessidadedereto-
mar a agendade combateàs desigualdades,co-
locadadeladonosúltimoscincoanos,comopo-
lítica de Estado. Isso implicareconhecerque de-
sigualdadessão produzidaspor processoseco-
nômicosimediatos,mas, sobretudo, comocon-
sequênciade clivagenshistóricasque se refor-
çamesereorganizamcotidianamente.Enquan-
to essa agendase reduzirasituaçõesemergen-
ciais,comouma formade mitigartragédiasso-
ciais,estaremosfazendoreformasna casa em
meioàtempestade.Talvezsejaahoradenospre-
paramoscomoo joão-de-barroque constróia
portaao contrárioda chuvapara que, quando
essa chegue,ele estejaprotegido.Eparaque,
quandoachuvavá embora,ninguémtenha
morridoafogadodentrode casa. Afinal,já são
maisde100milmortesdentrodecasa,afetando
desigualmentebrancosenegros,pobresericos.
MárciaLima é professoradoDepartamento de
SociologiadaUSP, coordenadora doAfro-Cebrap
e consultora daRededePesquisaSolidária.
IanPratesé pesquisadordoCebrape daRedede
Pesquisa Solidária.