Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1028 (2020-08-21)

(Antfer) #1

22 | Valor| Sexta-feira,21deagostode2020


GALERIA


ARQUIVO PESSOAL

AngelitaHabr-Gama na formatura da Faculdadede Medicinada USP

Angelitaem maio,ao receberaltada UTI do HospitalOswaldo Cruz

Em 1964, AngelitacasoucomJoaquim Gama-Rodrigues,da FMUSP

ARQUIVO PESSOAL

REPRODUÇÃOTV GLOBO

Angelitafez parte,em 1985, de umaoperaçãode Tancredo Neves

CARLOS PICCINO/ AGÊNCIA O GLOBO

Angelitanão fala sobreotratamentoeremé-
dios que utilizou.“O que eu poderiadizeréque
os protocolosrecomendadospela Organização
Mundialde Saúde(OMS)e, no Brasil,adotados
pelosgovernadoreseprefeitossão as medidas
corretas.” Entreessesprocedimentos,eladestaca
o uso de máscarasde proteção, lavar as mãos
constantemente,o uso de álcoolem gel e o dis-
tanciamentosocial.“A máscara não protegeo
próprioindivíduo, mas dificultaa contamina-
çãodeoutraspessoas.”
Mas não achadifícil seguiressasregrasno
Brasil,ondeo presidenteda Repúblicarejeitao
uso de máscarase recomendamedicamentos
não indicadospela OMS?Ela ri por uma fração
desegundo,olhaparaoladoeresponde:“Masas
regrasexistem,eapopulaçãotemqueouvirese-
guir oque a OMS,as nossasSecretariasEstadual
e Municipalde Saúdenos recomendam,e não o
que outraspessoasrecomendam.Elas devemse
orientarpela boa informação, e não pelo que
ouvememqualquerlugar”.
Angelitaéneta e filha de libaneses,imigran-
tesquedeixaramoLíbano,nofimdoséculoXIX,
quasesemprecom destinoaos EUA.Seus avós
CarloseMalak partiramda terra natalem 1908
comafilha,Nagibi,dedoisanos,para“fazeravi-
danaAmérica”.Foiumdesviododestinoprova-
velmentecausadopelo ventooceânicoque os
impediudechegaremaoportodeNovaYork.
Carlos,expostoao ar salgado,teve uma infla-
maçãonos olhos.Sem saberemexatamentedo
quesetratava,asautoridadessanitáriasemMar-
selha,na França,ondeonavio em que viajavam
fezumaescala,impediramocasaldeprosseguir
aviagem.DecididosanãovoltaraoLíbano,lem-
braramde algunsparentesno Brasilepara cá
vieram.MoraramumtemponoMaranhãoedali
forampara Belémdo Pará. Porfim, se mudaram
paraIlha de Marajó, ondeAngelitanasceue
cresceu,até que em 1940a famíliase estabele-
ceuemSãoPaulo,naVilaMariana.
Na cidade, ajovemAngelita levouuma vida
semelhanteàsdesuascolegascomquemcom-
pletou os estudos até o científico (curso equi-
valenteao ensino médio). Foientão que, por
exclusão,acaboupor prestarvestibular para a
Faculdadede Medicinada USP, em 1952.
“Meuspaisnãoconcordaram.Acharamaquilo
umabsurdo.Mas,desdemuitojovem,quando
decidoalguma coisa, não tem mais conversa.”
Seuspaisnãopensavamassim:“Ora,afinalpor
que ela não cursava o magistério (a opção na-
turaldasmoçasdaqueletempo)?”.
Antesdessaopção,chegaraapensaremenge-
nharia.Masnãotinhaafinidadecomdesenho.A
medicina,no entanto, se enquadrava no gosto
por biologia.“Fosse o que fosse,naquelaépoca,
uma mulherem qualquercursodessessempre
causava espanto.” Ela enfrentouovestibulare,
entre600candidatos,ficouemoitavolugar.

E a vida seguiuaté que, no sextoano, os alu-
noscomeçavamointernatono HospitaldasClí-
nicasda Faculdadede Medicinada USP e, logo
depois,deveriamescolherumaespecialidade.
Para Angelitafoi outromomentodifícil. Após
estagiarem diferentesespecialidades,com no-
mes hoje vistoscomopioneirosem suas áreas,
ela não encontrarauma pela qual se apaixonas-
se.“Talvezsoubesse.Maspreciseidaquelecolega
que me mandoufecharabarrigado pacientee,
parameestimular,falou:‘Fecha,vocêlevajeito’.”
Àépoca,eraconhecidacomo“dedaldeouro”.
Otítulo não se referiaàs suas habilidadesci-
rúrgicas.Era uma distinçãoque alcançaranos
“ShowsMedicina”, atividadedocentroacadêmi-
co com apresentaçõesepeças de teatro. Ao co-
meçaraparticipar, Angelitaacharaas fantasias
horríveis.Com as colegas,fez outrostrajes.“Pas-
saramanos chamarde as artistasdo ‘ShowMe-
dicina’.” Na formatura,ganhouumaflâmula
com o títuloque, hoje,figuraao lado das suas
dezenasdetítulos,homenagenseprêmios.
A ideia de ser cirurgiã viroudecisãomadu-
ra. Só que ultrapassar a barreira construída
por homens, entãoos donos da especialida-
de, não seriasimples. Ela recorreao tênis,es-
porteque pratica até hoje, para explicar.“Há
um instante em que você bate na bola,e ela
voa em direçãoaocampoadversário.São
menosque segundos de respiraçãosuspensa.
Mas ela paranas cordas. Equilibra-se. Pode
cair no seu campo ou no de seu adversário.
Está lançada a sorteda partida. A vida depen-
de da nossa sorte.Não me envergonhoem
dizerque sempretive sorte.”
Sorte,sim. Mas esforço,estudoeobstinação,
contamseuscolegas,foramdecisivos.Acirurgia,
naquelaépoca,era especialidadeproibidaàs
mulheres.Por que não tinhamcapacidadepara
a função?Não. Porqueos cirurgiõesachavam
“desperdício” investirtempoe recursosna for-
maçãodeumamulheremespecialidadetãono-
bre. “Foi uma guerra,uma epopeia.Você acredi-
ta que não queriamnem deixarque eu me ins-
crevessenoconcurso?”Porém,eladizqueestava
determinadaeconsideravaque,sejádobraraos
pais na escolhada profissão,não seriamos se-
nhoresde jalecobrancoe ar sisudoque aimpe-
diriamde seguirem frente.“Sabeque minha
mãeeraumamulhermuitodeterminada?Puxei
issodela,edizemquesouassimdesdequenasci.
Ela morreucom 97 anos e me disse:‘Estoumor-
rendosobprotesto.Émuitocedoparamorrer’.”
Porque não podiaconcorrerauma vaga na
residênciada cirurgia?As vagaseramdisputa-
díssimas.Portanto, por que perderumadelas
com uma mulherque, no raciocíniomasculino,
operariadurantealgumtempoedepoisaban-
donariaaprofissãoparacasareterfilhos?Nessa
lógica,seriamelhordestinaras vagasaos ho-
mens,queteriamamulherparacuidardacasae
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