34 |Valor|Sexta-feira,21deagostode2020
“Porquem
vocêestá
chorando?”
T
odavezquesurgeumtabuna
arte,surgetambémuma
transgressão.Semprepenso
nissoquandoouçocríticos
implicandocomousodo“off”(oudo
“voiceover”)nocinema.Segundoa
teoria,avozacimaouforadacenaé
umaespéciedemuleta,umatalho
vulgarpararoteiristas/diretoresque
deveriampreferirasofisticaçãodos
recursosvisuais—ouentãoa
dramaturgiadasfalasdosatores,que
sófuncionariaacompanhadapela
expressividadedosseusgestos.
Umadasminhas“graphicnovels”
preferidas,“FunHome”, daamericana
AlisonBechdel(Todavia,234págs,
traduçãodeAndréConti),podeser
lidacomoumarespostaaesseclichê.
Atrama,sobrearelaçãotumultuada
daautoracomopaieaprópria
sexualidade,édivididaentreos
desenhoselongasefrequentes
legendasexternasaosbalõesde
diálogo, oquenouniversodos
quadrinhosequivaleriaao
“off”/“voiceover”deumfilme.
Bechdelsabe,noentanto, quea
questãonãoéousodorecursoxisou
ípsilonemsi.Umalegendapodeser
apenasreiteraçãoouoferecerao
leitorumanovacamadadesentido.
Em“FunHome”háumavariação
constanteentregravidadeeleveza,
muitasvezesnamesmacena.
Quandoodesenhoflagraa
banalidadedocotidiano,por
exemplo,otextoacolorecom
citaçõesdealtaliteratura.Quandoo
textodescrevemomentostrágicos,o
traçosugereumaironiacarinhosaem
cimadepersonagensdoces.
“FunHome”éumadasreferências
quemevieramàcabeçaaoler
“Be zimena”,deNinaBunjevac
(Zarabatana,224págs.,traduçãode
ClaudioR.Martini).Àsemelhançado
livrodeBechdel,ahistóriapartede
umcomponentebiográfico
sombrio,expostopelaautora
numposfácio.Em1988,aos15anos,
nacidadesérviadeAleksinac,
duranteaascensãodonacionalismo
quedesaguarianaGuerrada
Bósnia(1992-1995),elasofreu
umatentativadeestuprocoma
conivência(ouoauxílioativo)de
umacolegadeescola.Diferentementede“FunHome”,
aquiogêneroescolhidoéaalegoria,
queatualizaereelaboraahistóriade
ÁrtemiseSipriotes.Namitologia
grega,eleétransformadoem
mulherporela,deusaefilhadeZeus,
comopuniçãoporumatentativade
abuso.NolivrodeNina,éuma
mulherquerenascecomomenino
depoisdeteracabeçamergulhada
numrio–e,nessenovocorpo,passaa
verosofrimentodomundosobo
pontodevistadeumestuprador.
Éverdadequeaousadiado
procedimentode“Be zimena” por
vezescontrastacomovirtuosismo
algoconvencionaldotraçodeNina:
desenhosrealistasquemisturam
influênciasdopontilhismo,do
romance“noir”edosquadrinhosde
terrordasegundametadedoséculo
XX.Tambémanarrativavisualnão
chegaasersubversiva:aautorase
apoiajustamentenoqueseriauma
vozforadacena,um
diálogo/monólogopostoembalões
naspáginaspares,sobreumfundo
pretoestrelado,proferidoemtom
neutroemterceirapessoa,enquanto
aaçãotranscorreemsilêncionas
ímpares.
Ocontraste,porém,temefeito
análogoàqueleobtidoporAlison
Bechdel.OsdesenhosdeNina
começammostrandooprotagonista
comoumbebêgorduchovestindo
touca,cujonascimentofoium
“mi lagre” numafamíliareligiosae
respeitadaquehaviaperdidoa
esperançadeterfilhos.Nãoéuma
narrativadeinocência,porquejána
infânciaopersonagem“ficavase
apalpando” naescolaenaigreja.
Sóqueosdesenhosnãotêmum
sentidomoraldireto.Emalguns
pontoselesinduzematéaumacerta
compaixão,porqueomeninoé
motivodeescárnioentreaturba
ameaçadoradeseuscolegas,apanha
dopadre,aprendea“guardaranseios
parasimesmo”nasolidãoàmeialuz
deseuquarto.
Domesmomodo,atoxidadede
seusatoscomoadultoémostrada—
claro,éoseupontodevista—como
consequênciaderelações
consensuais.Emalgunsmomentos,
Ninaparecejogarcomaambiguidadedoerotismodos
desenhos,queremetemaoque
poderiaestarnumahistóriaS&M
ilustradaporGuidoCrepaxouMilo
Manara.Háumsensotrágiconesse
engano,cujomanejonosaproxima
deumconteúdoatraenteerepelente:
oprotagonistaemergecomoalgoze
tambémvítimadefantasmas
insondáveis,umtumultointeriorque
nasimbologiadeelementos
constantesdodesenho—umacoruja,
umcervo,umamatilhadecães
selvagens—remeteàanimalização
desuasvítimas.
ExisteumafalacélebredeBechdel
sobrecomo,naficção
contemporânea,asmulheressempre
têmsuapsicologiadefinidaem
funçãodoquedizemepensamos
homens.Omodocomo“Be zimena”
lidacomesseoutroclichêéradical.Técnicae moral numa
“graphicnovel” sobre
estupro. PorMichel
Laub
OUTROSESCRITOS
MichelLaub,jornalistae autordosro-
mances“DiáriodaQueda”e“O Tr ibunal
daQuinta-Feira”,escreveneste espaço
quinzenalmente