A Bola - 20200822

(PepeLegal) #1

A BOLA


Sábado
22 de agosto de 2020
A Bola de SÁBADO 27

Entrevista


— A distância, este sossego
amedrontado, pode ser um cata-
lisador para um artista ou pare-
ce-lhe, por outro lado, que é da
atividade, do choque, e do baru-
lho, que as coisas normalmente
saem?
— Não acho que haja situações
ideais para a criação. Se tanto, a
criação é um reflexo dos tempos

em que se vive. Antes disto acon-
tecer, estava a trabalhar em can-
ções que larguei pouco depois do
confinamento começar. Isto por-
que elas não faziam qualquer sen-
tido para mim, era como se elas
pertencessem a um mundo que
agora não existia ou que estava em
pausa. Comecei a escrever outras
coisas, mais relacionadas com o
mundo que me rodeava.

— A foto da capa — sendo o Da-
vid também fotógrafo — é sua?
Porquê o menino da lágrima?
— É minha. O quadro está em
casa dos meus pais desde que me
lembro. Fotografei-o há muitos
anos e fui buscar esta foto por uma
razão pessoal. Os meus pais com-
praram este quadro porque, apa-
rentemente, eu era parecido com
esta criança quando era pequeno.
Sempre que alguém apontava para
o quadro, diziam que era eu. Quan-
do fiz este disco, queria que fosse
uma foto antiga, como as canções
que o compõem. Esta foi ideal por-
que, de alguma maneira, sou eu
retratado ali.

— Como era em miúdo: que des-
portos, que jogos de futebol na rua,
que brincadeiras de corridas e lu-
tas? Ou era bem diferente?
— Acho que era igual a muitos
miúdos, embora não fosse ligado a
qualquer desporto. Jogávamos à
bola em frente à casa dos meus pais
com os vizinhos, a clássica apa-
nhada, escondidas, etc. Além das
aulas de educação física, nunca fiz
nenhum desporto na vida. Não era
mau nem bom. Era mediano. Hou-
ve apenas uma área onde era me-
lhor que todos, o salto em altura.
Era já muito alto para a minha ida-
de, muito magrinho e aquilo era
mais fácil para mim do que para os

outros. Cheguei a ser convidado
para praticar atletismo, fui aos trei-
nos umas duas vezes e desisti. Não
era mesmo para mim. Preferia o
breakdance e a música. Nunca gos-
tei de desporto, mas na verdade
também nunca quis ser músico.

— Ser músico foi um acaso?
— Completamente. Nunca quis
ser músico, nunca tal coisa me pas-
sou pela cabeça. Mesmo quando
estava nos Silence 4, achava que
era uma coisa passageira. Acho que
só quando fiz o meu segundo dis-
co a solo é que assumi para mim que
agora esta era a minha profissão. A
música tinha sido um passatempo
desde sempre e acabou por ser um
passatempo a tempo inteiro.

— Admite um dia deixar a mú-
sica e ser apenas fotógrafo?
— É um desejo secreto, mas con-
fesso que gosto demasiado de mú-
sica para levá-lo a cabo. Talvez um
dia consiga ser mais intermitente
entre as duas atividades.

— Que outra exploração artísti-
ca persegue, além da música e da
fotografia?
— Às vezes aventuro-me no
mundo da arte e faço os meus vi-
deoclips. E estou sempre a apren-
der coisas novas, acho que o meu
interesse é ainda maior quando te-
nho a oportunidade de aprender.

— Voltando ao desporto, como
espectador, tem preferências des-
portivas? Vê modalidades?
— Gosto de modalidades que só
vejo com os Jogos Olímpicos, como
a ginástica artística. É fascinante o
que determinados atletas conse-
guem fazer com o corpo, parece-
-me irreal. Fora disso, gosto dos
campeonatos de snooker, por ter
jogado muito quando era miúdo e
ainda ficar fascinado com isso.

— E fotografar desporto, agra-
da-lhe?
— Seria interessante, nunca se
sabe se não poderei tentá-lo um
dia. Mas não é algo que me atraia
naturalmente, talvez por ser uma
área que não domino.

— Acha o desporto alienante?
— Depende do grau de alienação
que estamos a falar... Quando vejo
comportamentos violentos, pare-
ce-me que se vai longe de mais. E
isso acontece porque acaba por se
interpretar o desporto e a compe-
tição com uma irracionalidade que
apaga o bom senso. Mas em geral,
acredito que o desporto é uma mais-
-valia na vida de qualquer pessoa.

— Mantém a boa forma.
— Faço exercício em casa e faço
pilates. Sou ativo e tento manter
um equilíbrio saudável que me per-
mita fazer tudo o que quero. E como
quero fazer muitas coisas, vivo fo-
cado em manter esse equilíbrio.

— Como lida com o progressi-
vo fim do objeto, com a digitaliza-
ção de quase tudo. Chegar a casa de
alguém e ver livros e discos nas es-
tantes sempre me deu uma espé-
cie de cartão de visita: esta pes-
soas são o conjunto destas coisas.
Agora há cada vez menos objetos,
há subjetos (palavra que nem creio
que exista), há coisas a que acede-
mos sem as ter. Sendo da geração
que vive esta transição é algo que
o incomoda?
— A minha casa está cheia de
livros e discos, objetos que agora são
acessíveis sem termos a fisicalida-
de deles nas nossas casas. Acho que
se perde algo nesta digitalização
do mundo, mas mais uma vez acho
que se pode procurar um equilí-
brio. Há coisas que continuo a pre-
ferir que sejam físicas, como os li-
vros, mas hoje ouço mais música
em formato digital. Continuo a gos-
tar de escrever em cadernos, nun-
ca tive um tablet e sou resistente às
novidades tecnológicas. Por outro
lado, fotografo quase tudo em di-
gital (o que é algo recente, pois fo-
tografava sempre em filme até há
5 anos) e no mundo da música,
acompanho softwares e hardwares
com mais atenção. Mas é tudo uma
questão de equilíbrio. No final do
dia, continuo a acreditar que me-
nos é mais.

Além das aulas de


educação física,


nunca fiz nenhum


desporto na vida


ECA


O nome de David Fonseca
surgiu, liderante, nos Silence
4, nos anos 90, num estilo pop
internacionalizado que prencheu
Portugal com novidades. Mas há
quase 20 anos que tem uma
carreira a solo, preservando a
mística de um compositor solitário,
ora em inglês, ora em português,
ora em silêncios. Pelo meio, a
estética, a fotografia, a
preocupação com as imagens dos
próprios discos, com a realização
dos próprios vídeos. E álbuns,
vários. Bons. E colaborações. E
projetos paralelos de sucesso:
Humanos. Um artista português
progressivamente camaleónico.
Lançou agora Lost and found — b-
-sides and rarities, pedaços de
qualidade deixada para trás. Já não.

Um estilo


camaleónico


j


PERFIL

O menino da lágrima?


A foto era de casa dos


meus pais, diziam que


era parecido comigo


A abrir o novo ‘Lost and Found – B Sides
and Rarities’ está um tema inédito (nem
publicado nem gravado) ‘Só depois,
amanhã’. Um disco que é, de certa forma,
um produto de confinamento, a capacidade
de olhar para trás
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