O Jogo - 20200823

(PepeLegal) #1

C


aro Leo:
Desde que me conheço
que sou argentino de
afetos. Ou de viveiro, vá.
Já expliquei: tudo
começou naquele
Mundial de 1978 quando
o meu pai era pela
Holanda e o meu coração
foi arrebatado por essa
seleção de cabelos rebeldes sem que eu
pedisse licença para desarrumar as
convicções ideológicas caseiras.
O meu pequeno mundo ainda pouco
sabia da vileza humana, da violência
fardada e das malvadezas dos tiranos,
com exceção dos relatos ouvidos à mesa
sobre as vidas clandestinas de parte da
família. Quando, pela primeira vez,
visitei Buenos Aires e comprei a
camisola 10 dessa equipa amaldiçoada,
mas tão afagada no meu imaginário,
venderam-ma barata, como se a
memória desse tempo ainda sangrasse –
e sangra – e o tecido fosse peçonha. Há
uns anos, num bar de Burgos, em
Espanha, ainda contestei, entre o sóbrio
e o entornado, as provocações de outros
camaradas de ofício a propósito desse
título supostamente comprado pela
ditadura militar. Estava com o Alejan-
dro Rodriguez, saudoso amigo porteño,
e defendemos, com brio e umas quantas
alarvidades alcoolizadas, a honra do
imperador César Menotti. Não puxem
por mim.
De criança para cá é assim: fui Ubaldo
Fillol em tardes de peladinhas, salvando
golos certos e bolas feitas de pacotes de
leite amarrotados. Tive uma amante
brasileira, no Mundial de 1982, mas só
traí uma vez – juro! - porque Maradona
“la cagó” e o baloiço e balanço “canari-
nho” foram mais fortes, por alma de
Sócrates, Zico e Falcão. Lá em casa,
assim pela rama, há o cartaz de 1978
emoldurado, o quadro da mascote
Gauchito, uma simpática biblioteca
argentina, da poesia ao futebol, de
Sabato a Leila Guerriero, e umas
quantas biografias tuas.
A Argentina mora nas estantes, nas
paredes, nos armários, num avental
sexy, na Mafalda estampada numa
tshirt ajustada a curvas eróticas, num
velho porta-chaves, numas havaianas
com as cores da seleção (oh ironia!) nas
melodias de León Gieco e Natalie Pérez,
e até na camisola 10, pés fabulosos e
olhos curiosos da minha sobrinha
Leonor, Messi pequenina, ou nas
soberbas tiradas do meu Francisco
Marchesín de oito anos, a rasgar-se até
aos limites em cada defesa. Se nisto
incluísse a nostalgia do vivido, amanhã
ainda aqui estava.


Miguel


Carvalho


Bola
de trapos
Para ti, Messi, esta carta

que nunca lerás


Tanto sexo só
podia dar
grande molha

A Deborah Secco, que é uma actirz que aos
40 anos faz inveja a muita rapariga nova e,
sim, tem capacidades para levantar um
morto, confessou que chegou a fazer sexo
dez vezes por dia, com o marido. Nada
contra, atividade tamanha só lhe fica bem,
e felizardo do marido. Mas, olha, minha
linda, não se enganaram no apelido, não
devia ser Deborah Molhada?

Ora, falemos então


de pernas boas


E


is-me de partida para a fantástica,
fabulosa e fascinante aventura de fazer
uma crónica sem falar no Jorge Jesus
(ops, já falei). Nos tempos que correm,
admito, é muito complicado. Não há bloco
noticioso que não fale do próximo craque a
vir para Benfica de Jesus, são blocos e blocos,
blocos de cimento, blocos de notas, apontei
aqui que devia antes falar de pernas boas
(podia falar das tuas, querida, que já não vejo
há algum tempo, mas acho que continuam
em grande forma). As minhas pernas
também são bonitas, dizem elas, mas quando
falamos de pernas boas, a nossa memória
atira-nos aí para os anos 80, quando a Tina
Turner pisava os palcos e aumentava os níveis
de testosterona de um eunuco. Em 1992, era
Jorge Jesus um jovem treinador do Amora
(ops, falei outra vez), Michael Douglas
também sentiu os efeitos de umas pernas de
sonho quando apanhou pela frente aquela
desavergonhada da Sharon Stone a cruzar e a
descruzar as pernas, perante uma plateia de
polícias à paisana (será por isso que o director
nacional da PSP se chama Vagina da Silva,
desculpem, Magina, a Língua Portuguesa é
um bocado atrevida. Como trocadilho está
muito bom). Também temos as pernas da
Cristina Ferreira, que não é uma Tina Turner
ou uma Sharon Stone, mas fazia-se, embora,
por estas alturas, a apresentadora esteja com
um problema grave: a SIC exige-lhe 20
milhões de indemnização por quebra do
contrato. Os fãs da Tininha já começaram a
fazer peditórios para a ajudar, Luís Filipe
Vieira vai meter a leilão uma camisola
autografada por Cavani (embora eu esteja
desconfiado que demora mais o Cavani a
chegar ao Estádio da Luz do que a Polícia
levou para apanhar o arouquense Pedro
Dias). Eu próprio vou doar dez por cento do
altíssimo salário que O JOGO me paga - e que
me permite lavar uma vida de luxo, dois
carros topo de gama, uma piscina olímpica no
jardim da mansão à beira-mar, sim fumei do
proibido - para ajudar a Tininha a pagar a
indemnização à SIC, e ainda vou emprestar
algum ao Novo Banco. Com isto, passou mais
uma semana e o Ramalho ainda não foi preso.

Por estes dias


POR REY CHARLES

MÓ DE CIMA


Pus os pés no teu país duas vezes e mal
saí de Buenos Aires, mas não hei de ir
desta para melhor sem pisar o chão das
tuas raízes e do mais famoso Ernesto da
História. Rosário é território de
revolucionários, cada um à sua maneira,
nem anjos nem demónios, simples-
mente humanos, pois sempre fazem
mais falta do que heróis insuflados.
De mim não esperes a devoção dos
fanáticos que secam tudo à volta.
Nunca vi os teus dribles e golos horas a
fio, não sei o resultado de todos os jogos
em que fizeste magia e não sigo a tua
vida ao detalhe. Mas aos meus olhos, no
teu jeito insubmisso de inventar
futebol onde não existe, encarnas o
tango e a poesia dos teus, sempre à beira
do precipício, entre glória e desastre.
Desafias as leis, mesmo que te derru-
bem e não te queixes. Quando te
levantas e foges para o golo vejo-te
numa tirada de Caparrós, nos sonhos

indomáveis que habitam as traseiras
das cidades e num elogio de Hérnan
Casciari, aquele que melhor te descre-
veu com palavras inacessíveis a rafeiros
como eu.
Tal como ele, perante notícias que te
dão longe de Barcelona ou no ocaso da
carreira, sinto nostalgia do presente.
Um embaraço e os teus 33 anos dão para
muita idiotice, tão contagiosa como um
vírus.
Na verdade, não me interessa se ficas,
se dizes adeus ao teu regaço de sempre
ou te reinventas a partir da tempestade.
Viver no teu tempo foi, continuará a
ser, a história que gostaria que me
contassem antes de adormecer. Depois
de te ver jogar, já nenhuma criança
cresce. E para essa infância do futebol
só há uma palavra: eternidade.
Obrigado, Leo. E sê feliz.

*Grande Repórter da VISÃO

Manu Fernandez/AFP

Domingo, 23 agosto 2020
http://www.ojogo.pt

(^24) t twitter.com/ojogo

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