Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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12 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


pada por uma expressiva população
afrodescendente que, mais tarde,
passaria por dolorosos processos de
deslocamento forçado e invisibiliza-
ção. Esses processos foram (e, de cer-
ta forma, ainda são) contínuos e sem-
pre vieram acompanhados de
políticas públicas conservadoras, que
invariavelmente se colocavam do la-
do da modernidade, da civilização ou
da higiene. Era preciso, aos olhos dos
homens de bem do passado e dos es-
peculadores imobiliários de hoje,
limpar o centro, respectivamente, de
seus costumes africanizados e de sua
população empobrecida.
No entanto, essa história não fi-
cou no passado. Como diria a mãe de
santo Yá Vera Soares de Oyá, na men-
cionada audiência pública do mês de
março: “Nós tivemos lutas incessan-
tes por essa questão de território. E,
no olhar da matriz africana, a ques-
tão do nosso sagrado, que centraliza
todo um comércio, que movimenta
um capital a partir dos povos tradi-
cionais que compram e gastam. E
perdura a renda per capita daquilo
ali. [...] Mais uma vez querem tirar
nossa identidade. A identidade do
preto, da tradição africana que per-
dura neste estado. Porque o Mercado
Público está localizado em Porto Ale-
gre, mas ele hegemoniza 60 mil casas
tradicionais que têm no estado do Rio
Grande do Sul e que, de uma forma
ou de outra, vêm, sim, à capital para
saudar aquele sagrado”.
Yá Vera refere-se ao ritual do pas-
seio. Trata-se de uma peregrinação
que marca o final da iniciação dos
adeptos do batuque, importante reli-
gião de matriz africana do Rio Gran-
de do Sul (ao lado da umbanda, do
candomblé etc.) e a única que tem
sua origem nesse estado.
Nesse ritual, o novo adepto, cerca-
do por outros membros de seu terrei-
ro, vai até o Mercado Público, uma
igreja – normalmente a do Rosário,
também no Centro Histórico – e, fi-
nalmente, a uma praia – em geral, o
Cais Mauá, bem em frente ao Merca-
do – para saudar as entidades das
águas, em especial a deusa Oxum. Es-
sa divindade, junto ao orixá Bará, pro-
tege toda a cidade de Porto Alegre.
O passeio devolve ao tempo do
instante e do agora a presença negra
maciça que existiu nesses lugares an-
tes de aqueles processos de desterri-
torialização e gentrificação os atingi-
rem. Essa peregrinação – que
consagra o novo filho de santo, mas
também renova o axé, a força vital, da
própria cidade – é marcada por uma
percepção do espaço e do tempo pró-
pria do batuque. Fazê-la caber em al-
gum agendamento, credenciar os ter-
reiros que podem ou não realizá-la
ou instituir qualquer tipo de regra ex-
trarreligiosa, como provavelmente


tem doença, que tem Covid, vai ter
uma coletiva de imprensa em que
tem que se cadastrar para poder fa-
lar. Ou seja, ninguém de nós vai po-
der se manifestar, tá, pessoal?”.
A mobilização on-line que se for-
mou desde então contradiz essa ava-
liação sombria. De qualquer forma, o
carinho que a maioria dos porto-ale-
grenses tem pelo Mercado, defenden-
do-o por décadas, é um dos maiores
indícios da força que emana desse
território sagrado.
A história do Mercado Público
sempre foi repleta de ameaças, afi-
nal. Além de seu prédio ter sido atin-
gido por grandes incêndios e inunda-
ções, a ideia de derrubar o Mercado
em nome da modernidade acompa-
nha a rotina dos permissionários há
tempos. O prédio quase veio abaixo,
por exemplo, na administração do
prefeito Thompson Flores, nos anos


  1. Na época, a população reagiu a
    tal ponto que ele abriu mão do proje-
    to e o prédio acabou sendo tombado
    como patrimônio histórico munici-
    pal. De lá para cá, o Largo do Merca-
    do foi declarado sítio arqueológico e
    mesmo o assentamento do Bará foi
    registrado como patrimônio imate-
    rial de Porto Alegre em 2013. Apesar
    disso tudo, a casa desse orixá ainda
    não está totalmente protegida, cor-
    rendo o risco, inclusive, de virar uma
    espécie de shopping, apenas com sua
    antiga arquitetura preservada.
    Neste momento, a patrimoniali-
    zação definitiva, em âmbito federal,
    do prédio e do Bará está sendo deli-
    berada. E não se trata somente de
    manter as paredes do Mercado de pé,
    mas de salvaguardar tanto os jeitos
    de mercar dos permissionários quan-
    to a convivência entre o sagrado e o
    profano desse lugar que viu a cidade
    nascer, dessa encruzilhada central
    que serve de moradia para o deus que
    tudo inicia, desse território densa-
    mente povoado pela memória dos
    africanos escravizados que viveram
    na capital gaúcha.
    Levará tempo para que se cons-
    trua um processo de patrimonializa-
    ção que contemple a importância do
    Mercado para a população de Porto
    Alegre como um todo. Certamente
    Bará há de permitir que isso seja fei-
    to com o devido zelo e que sua casa
    seja mantida, após a pandemia, do
    jeito que ele gosta: frequentada por
    todo tipo de gente, cheia de cheiros e
    cores, agitada e com suas quatro
    portas bem abertas.


Vítor Queiroz é mestre em História e dou-
tor em Antropologia pela Unicamp. Pesqui-
sa os cultos afro-brasileiros, questões étni-
co-raciais, arte, patrimônio e território.

1 Gabriela Sales, “Cineasta gaúcha faz comen-
tário racista em live”, Fórum, 7 jul. 2020.

acabaria acontecendo caso o Merca-
do Público fosse administrado pela
iniciativa privada, seria um desres-
peito com os batuqueiros, que estão
entre os principais guardiões da his-
tória negra da cidade.

O BARÁ DO MERCADO
Desde o início da pandemia, as ativi-
dades dos permissionários sofreram
severas restrições por parte da prefei-
tura. O Mercado Público passou todo
o mês de julho, por exemplo, de por-
tas fechadas. A Covid-19, que de fato
tem se espalhado velozmente no Rio
Grande do Sul, justificaria tais ações.
Para eles, porém, as medidas foram
aplicadas de forma desigual, uma vez
que outros estabelecimentos comer-
ciais puderam funcionar com menos
limitações. A propósito, as quatro flo-
ras, lojas especializadas em produtos
afrorreligiosos, que ficam à esquerda
de cada uma das quatro portas do
Mercado, foram obrigadas a seguir
protocolos especialmente rígidos...
Por ora, o estabelecimento tem
funcionado com apenas duas dessas
portas abertas. Para os religiosos de
matriz africana da cidade, esse não é
um mero detalhe. O ritual do passeio
acontece por conta do assentamento
de Bará que existe no centro do pré-
dio. Na verdade, esse orixá vive ali.
No batuque, assim como em outras
religiões afro-brasileiras, a força vital
(axé) dos fiéis e dos próprios deuses
deve ser ativada, assentada e planta-
da, isto é, enterrada cuidadosamente.
Assentamentos são, portanto, pedras
(otás) e outros objetos que servem de
suporte para os fundamentos (áwo)
que mantêm a vitalidade de alguém.
Os assentamentos correspondem a
verdadeiros corpos externos: eles per-
sonificam seres humanos e divinos
específicos. E, como Bará é o deus
das encruzilhadas, seu assentamen-
to, sua casa, fica bem no meio do edi-
fício, no cruzeiro formado pelo en-
contro das duas vias que dividem a
construção, suas lojas e armazéns em
quatro partes.
Bará, também chamado de Exu, é
o orixá do movimento, que dá vida e
dinâmica a tudo. Além disso, ele é o
mensageiro imprevisível e zombeteiro
que comunica e efetiva a vontade de
todos os outros deuses. Bará deve ser
honrado antes de qualquer atividade,
recebendo a primeira porção de tudo
o que se oferta aos outros deuses.
Essa divindade também ocupa os
espaços públicos. Bará é o dono da
rua. Ele é o responsável pelos encon-
tros (e confrontos) entre as coisas e as
pessoas, pela abertura e fechamento
das possibilidades, dos caminhos. É
por isso que as quatro portas do Mer-
cado, que levam diretamente ao seu
cruzeiro central, projetando-o no es-
paço da cidade, devem permanecer

simultaneamente abertas. É através
delas e do f luxo constante de pessoas
e mercadorias em todas as direções
que, afinal, a circularidade promovi-
da por esse deus é garantida.
Como os objetos extremamente
poderosos que estariam ali, junto aos
alicerces do prédio, teriam sido as-
sentados pelos escravizados que o
construíram em 1869, os fundamen-
tos do Bará se confundem com as
fundações do Mercado Público. Em
outras versões da história, eles foram
enterrados por uma importante per-
sonalidade regional, Osuanlele Eru-
pê, mais conhecido como príncipe
Custódio. Custódio era membro da
família real de Ajudá, no atual Benin,
e veio para o Brasil exilado por moti-
vos políticos, chegando ao Rio Gran-
de do Sul no final do século XIX. Ele
teria sido proprietário de uma banca
no Mercado, no início do século se-
guinte, e estabeleceria boas relações
com a elite gaúcha da época.

PATRIMÔNIO
De modo geral, os afrorreligiosos têm
enfrentado a Covid-19 com paciên-
cia, respeitando os protocolos sanitá-
rios locais e da OMS em todo o país, o
que não surpreende em cultos nos
quais tudo é feito de modo cíclico e
lento, com longos períodos de res-
guardo entre um ritual e outro. Além
disso, o território e a memória dos
mortos são elementos centrais para
as comunidades de terreiro.
No caso do Mercado Público de
Porto Alegre, todas essas dimensões
se cruzam. São os ancestrais do povo
de santo que o levantaram. Foram
eles mesmos, ou o príncipe Custódio


  • uma figura memorável do batuque
    gaúcho –, que plantaram o Bará no
    meio do prédio. A notícia do lança-
    mento do edital de concessão no
    meio da pandemia, em contraste
    com o pesar do momento, indignou
    os afrorreligiosos. Para uma parte
    deles, a prefeitura teria aproveitado a
    crise sanitária para tocar o projeto
    de modo rápido e sorrateiro. Nas pa-
    lavras de um pai de santo, ditas as-
    sim que ele soube que essa proposta
    seria levada adiante: “Essa adminis-
    tração intolerante e racista do Mar-
    chezan não respeita nem o período
    de Covid, em que a gente está com
    mais de 30 mil mortos neste Brasil
    [...]. Covardemente, o Marchezan es-
    tá lançando o edital de concessão do
    Mercado Público. Que é que ele vai
    fazer? Aí sim, ele vai justificar que


Sua construção, que em
outubro completa 151
anos, se confunde com a
história de Porto Alegre
.
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