Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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SETEMBRO 2020 SETEMBRO 2020Le Monde Diplomatique Espaço InstitucionalBrasil

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s manifestações antirracistas realizadas em todo o mundo este ano
apontam que, se queremos construir uma sociedade equânime, é ne-
cessário compreender qual o papel que cada estrutura socioeconômi-
ca desempenha na reprodução do racismo a fim de desenhar estraté-
gias eficazes para o seu enfrentamento. A educação, enquanto
elemento nevrálgico para qualquer mudança, é essencial nesse debate, de modo
que, sem uma educação efetivamente antirracista, não é possível pensar em uma
sociedade igualitária.
Segundo o antropólogo Kabengele Munanga,^1 professor da Universidade de
São Paulo (USP) e um dos principais estudiosos das relações étnico-raciais na so-
ciedade brasileira, o enfrentamento do racismo demanda uma abordagem triparti-
te: legislação, educação e ações afirmativas.
A legislação opera no combate direto às manifestações materiais do racismo.
Há muito o que se conquistar nesse campo. Porém, como o racismo é um fenômeno
de ordem política e também cultural e psíquica, de modo que as subjetividades dos
sujeitos brancos e não brancos são educadas a reproduzir a superioridade branca,
a legislação não tem poder de se efetivar na materialidade socioeconômica e, sobre-
tudo, nos domínios mais subjetivos em que opera o racismo cotidiano.
De acordo com Mununga, é na educação que se constroem essas imagens este-
reotipadas e discriminatórias do sujeito e da população negra, de modo que apenas
a prática educativa tem o poder de desconstruí-las: “Só a própria educação é capaz
de desconstruir os monstros que criou e construir novos indivíduos que valorizem
e convivam com as diferenças”.
Que tipo de educação tem esse poder transformador? De acordo com Munanga,
a resposta encontra-se em uma educação antirracista, multicultural e pluriversal,
ou seja, que não seja universal – focada em uma única visão de mundo eurocêntri-
co –, uma vez que acomoda a pluralidade das visões de mundo, valorizando a di-
versidade que nos faz humanos.
A educação é central tanto para a reprodução do racismo como para o seu en-
frentamento. Nas palavras da pesquisadora Sueli Carneiro:^2 “A educação sempre
foi um campo de batalha para nós, negros”. A chamada grande batalha começa
ainda no século XIX, com a luta abolicionista, que já pautava o acesso à educação.
A Frente Negra Brasileira, nas décadas de 1930 e 1940, permanece na construção de
massivo processo para facilitar o acesso à educação, e o movimento negro, desde a
constituinte até o presente, mantém-se nessa mesma luta. O grande mito da demo-
cracia racial continua sendo reiterado quando até mesmo as imagens de luta e en-
frentamento do racismo só são amplamente divulgadas se internacionais. O papel
do movimento negro brasileiro na garantia do acesso à educação e na construção
de uma agenda político-pedagógica rumo a um currículo e uma prática educacio-
nal antirracistas é central, garantindo nos últimos trinta anos conquistas funda-
mentais, como as ações afirmativas e a Lei nº 10.639/2003, que altera a Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatório o ensino da
cultura e história africana, atualizada depois pela Lei nº 11.645/2008, que contem-
plou a história e cultura indígena.

COMO CONSTRUIR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA?

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romover uma educação antirracista vai muito além de simplesmente comba-
ter as manifestações materiais do racismo cotidiano, como ofensas e xinga-
mentos. Apesar de positivas, as medidas que promovem a melhoria do clima
escolar e a dissolução de conflitos com base em discriminação étnico-racial não
bastam para a construção de uma educação efetivamente inclusiva e equânime. A
educação antirracista implica necessariamente a revisão do currículo, garantindo
sua pluriversalidade, bem como a composição de um corpo docente etnicamente
diverso e formado em competências curriculares que abranjam a cultura e a histó-
ria de povos africanos e ameríndios.
Ednéia Gonçalves, diretora executiva da Ação Educativa, destacou, em repor-
tagem do site do Centro de Referências em Educação Integral (11 jun. 2019), que não
basta que as escolas tratem o racismo como um conflito interpessoal. É preciso
compreender a sua dinâmica estrutural, promovida inclusive pela própria escola,
quando esta não aborda a história e a cultura dos sujeitos e povos não brancos a
partir de sua própria perspectiva: “As escolas trazem o racismo como uma questão

1 Ver em: https://bit.ly/32zd8Cu.
2 Ver em: https://bit.ly/3hBJuTp.

entre duas pessoas, confundindo-o com bullying. Não o enxergam como um siste-
ma que se retroalimenta e se reinventa.”^3
Assim, construir uma educação antirracista implica encaminhar os conflitos
interpessoais, mas sobretudo reconhecer e valorizar as identidades e histórias de
todos os sujeitos no ambiente escolar. Quando o currículo e o material didático só
estão compostos de uma única perspectiva, na qual a história dos povos africa-
nos e indígenas começa a partir da dominação e da escravização, há um silêncio
estrutural que invisibiliza sua cultura e possivelmente desengaja os estudantes
não brancos.
Kabengele Munanga compreende esse silêncio como uma das ferramentas
mais eficazes na perpetuação do racismo brasileiro no processo educativo dos su-
jeitos. O silêncio sobre as diferenças e diversidade começa no âmbito doméstico e
persiste no ambiente escolar. Diante da não consideração da questão racial por
pais e professores, as crianças negras deparam-se ainda com a ausência da histó-
ria e de representações positivas de seu povo nas disciplinas e materiais didáticos.
Os silêncios, ancorados no mito da democracia racial, transformam a educação
brasileira em um grande perpetuador das diferentes formas de reprodução do
racismo e da desigualdade.
Sueli Carneiro destaca que o projeto brasileiro de nação é a recriação da Euro-
pa nos trópicos, de modo que a educação passa a ser reprodutora disso: “Se existe
história, é o Ocidente que construiu história; se existe civilização, é o Ocidente que
produziu; se existe conhecimento relevante, é o conhecimento produzido pelo
Ocidente. E todo esse processo de destituição das pessoas não brancas – dos ne-
gros em especial – da condição de ser sujeitos de conhecimento, sujeitos cognocên-
tricos, tem a ver com a própria destituição das pessoas negras de ser plenamente
humanas e que chamo em minha tese de doutorado de epistemicídio, que é negar.
Negar ao outro a capacidade de produzir cultura, conhecimento e de ser sujeito
relevante. Isso é obra da escravidão, da colonização e que o pós-abolição não resol-
veu. A escola reitera isso, não é gratuito que nossas primeiras experiências de ra-
cismo ocorram na escola”.

INTERLOCUÇÕES ÁFRICA E DIÁSPORA AFRICANA

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os últimos anos, gestores e educadores de todo o país passaram a colocar em
prática iniciativas com o propósito de enfrentar a desigualdade étnico-racial
na educação. Na construção de uma educação antirracista, é importante não
apenas visibilizar essas iniciativas, mas compartilhar os conhecimentos adquiri-
dos, as conquistas e desafios, contribuindo ainda mais para a equidade no ensino e
na aprendizagem.
O projeto Interlocuções África e Diáspora Africana,^4 desenvolvido no Centro
Educacional Maria Santa, em Pau Brasil, na Bahia, estimulou um diálogo plural en-
tre estudantes, professores, comunidade e o movimento negro, valorizando a cultu-
ra, a identidade e o pertencimento étnico-racial através do enfrentamento dos este-
reótipos raciais e do preconceito. Além de pesquisar as origens africanas e indígenas
de expressões usuais e cotidianas, os estudantes realizaram uma pesquisa sobre a
formação da favela Pau-Brasil, refletindo sobre a relação centro/periferia e as desi-
gualdades raciais.
Depois de atividades formativas com os professores, os mesmos passaram a
desenvolver práticas voltadas ao fortalecimento da identidade negra e da autoesti-
ma dos alunos em parceria com o movimento negro. As atividades abordaram
ainda a formação histórica das favelas, contrapondo as imagens estereotipadas
dos territórios e populações afro-brasileiros. Reunidos em grupos de pesquisa, os
estudantes foram provocados a repensar o território onde vivem e as favelas em
sua composição cultural e criativa, para além do racismo territorial. Por fim, os
estudantes remontaram, através de maquetes, as favelas em sua diversidade, pro-
vocando reflexões de pertencimento, fortalecendo a autoestima e a autoimagem
positiva, de maneira interdisciplinar, envolvendo toda a escola.
A educação possui um papel transformador e central na sociedade, de modo
que, se a construção de um ensino antirracista envolve múltiplas abordagens e pers-
pectivas, isso se deve ao caráter estrutural e sistêmico que o próprio racismo possui
em nosso cotidiano. Educar para a diversidade, enfrentando as desigualdades, é um
desafio histórico que demanda escuta, atenção e compromisso com a equidade.

3 Ver mais em: https://bit.ly/2YIuAn2.
4 Ver em: https://bit.ly/31AcTbd.

O papel da escola no enfrentamento do racismo


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OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO: ENSINO MÉDIO E GESTÃO


http://www.observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br


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