Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15


nio. Eles também foram chamados a
dar particular importância aos sinais
e prodígios do divino. Milagres,
curas, “profetização” e “falar em lín-
guas” (linguagem espiritual sobrena-
tural com a qual o fiel se comunica
diretamente com Deus) são os gran-
des pilares dessa religião abertamen-
te proselitista.^3
Foi então que os círculos neopen-
tecostais começaram a difundir a
teologia da prosperidade, que faz da
fé meio de obtenção de abastança fi-
nanceira. A riqueza, portanto, passou
a ser apresentada como um sinal de
saúde espiritual, sem que haja motivo
para condená-la (ao contrário, a po-
breza é muitas vezes considerada
uma punição divina). Os crentes são
chamados a fazer doações regulares
para apoiar sua Igreja. Doar dinheiro
tornou-se, assim, um gesto profilático
que pode afastar o mal, resolver pro-
blemas pessoais e permitir curas.
Aqui e ali, retumbantes escândalos fi-
nanceiros e morais macularam esse
esplendor.^4 Fiéis abusados procura-
ram a Justiça, e televangélicos como o
famosíssimo Jimmy Swaggart, es-
trondoso perseguidor do mal diante
das câmeras, tiveram de prestar atos
de contrição por ter cedido à tentação
da carne, o que inspirou o sucesso Je-
sus, He Knows Me [Jesus, Ele me co-
nhece], da banda de rock Genesis.
Mas a máquina estava funcionando.
Aos poucos foram surgindo as trans-
nacionais evangélicas. As trocas entre
países aumentaram. Os missionários
norte-americanos foram sucedidos
por quadros locais, continuando o re-
crutamento de novos seguidores. Es-
colas, universidades, centros cultu-
rais e hospitais brotaram do solo:
tudo deveria contribuir para a difu-
são da doutrina.
No mundo inteiro, inclusive na
França, onde o movimento conta
quase 700 mil seguidores e continua
crescendo,^5 a força dos evangélicos
reside em sua capacidade de sacudir
velhas estruturas hierárquicas e
mostrar pragmatismo. Eles cons-
troem templos em qualquer lugar:
um cinema desativado, um pequeno
restaurante, uma garagem velha. Não
há crise vocacional entre os pastores:
enquanto a Igreja Católica luta para
conseguir sacerdotes, qualquer evan-
gélico pode assumir um ministério,
basta um pouco de carisma e algu-
mas cadeiras de plástico ao redor de
um teclado elétrico e de uma Bíblia. A
comunhão entre os evangélicos se
fortalece pelo fato de que o rito é ba-
seado na emoção: eles cantam, riem,
choram com a evocação da crucifica-
ção de Cristo, entram em transe. A
música é o elemento central da cele-
bração, e seu acervo é imenso: gos-
pel, rock cristão, country evangélico
etc. Nessa dinâmica, a comunicação


e a criação de mídias são um trunfo
crucial, assim como o proselitismo
de rua e as campanhas intensivas de
evangelização nas redes sociais.
A galáxia evangélica está longe de
ser homogênea. Os batistas, que re-
montam ao século XVII e contabili-
zam hoje 100 milhões de crentes, di-
videm-se em uma infinidade de
igrejas bastante progressistas ou mo-
deradas, sendo uma de suas grandes
figuras o ex-presidente dos Estados
Unidos Jimmy Carter, ganhador do
Prêmio Nobel da Paz de 2002. Nem
todos os neopentecostais são adep-
tos da teologia da prosperidade e
nem todos votam em candidatos de
direita, com parte desse grupo ofere-
cendo um forte apoio aos presidentes
venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás
Maduro. Mas a maioria permanece
ultraconservadora, quando não rea-
cionária. Frequentemente favorável
à pena de morte e ferozmente con-
trário ao aborto, o neopentecostalis-
mo rejeita, em nome da “defesa da
família”, leis favoráveis a minorias
lésbicas, gays, bissexuais e trans
(LGBT+). Em Uganda, as igrejas
evangélicas militam permanente-
mente em prol do endurecimento de
uma legislação que já criminaliza a
homossexualidade, reivindicando
leis que autorizem “terapias de con-
versão” dedicadas a mudar a orienta-
ção sexual de pessoas LGBT+. No
Malaui, na África do Sul e no Zimbá-
bue, o discurso homofóbico e anti-i-
migração é amplificado por televan-
gélicos que, entre os mais famosos,
como o “profeta” Sheperd Bushiri,
detêm fortunas colossais.
A laicidade e o secularismo estão
na mira dos evangélicos. Seja no Bra-
sil, na Nigéria ou na Coreia do Sul, o
discurso político está impregnado de
referências religiosas muitas vezes
hostis à modernidade e ao progresso.
Para Valdemar Figueredo, professor
de Ciência Política e teólogo brasilei-
ro, o objetivo dos evangélicos é “re-
troceder, ir contra o Estado laico, a
ciência autônoma, a importância das
universidades, o pensamento livre, a
condição da mulher, as questões de
gênero, os direitos das minorias. São
grupos medievais no pior sentido.
Politicamente, isso muda tudo: já não
se trata mais de uma discussão entre
conservadores e progressistas, em
um contexto democrático. A partir do
momento em que o lema do governo
é ‘Deus acima de tudo’, isso significa
que tudo está em risco”.
Encarnando a alternância à es-
querda, o presidente mexicano, An-
drés Manuel López Obrador, tam-
bém não hesita em adotar a
linguagem político-bíblica, procla-
mando-se “discípulo de Jesus Cristo”
e aliando-se a um pequeno partido
conservador, o Encuentro Social

Iluminação
Nós, cristãos dos Estados Unidos, saudamos a obediência de Donald
Trump à Palavra de Deus sobre Jerusalém. [...] Biblicamente, como cristãos,
estaremos perante o Todo-Poderoso e seremos responsáveis pelo que fa-
zemos ou não por Israel e por nossos companheiros judeus.
Laurie Cardoza-Moore, militante evangélica sobre a transferência da Embaixada
dos Estados Unidos de Tel Aviv para Jerusalém, Haaretz, 6 dez. 2017.


Mudamos a capital de Israel para Jerusalém. Isso é para os evangélicos.
Você sabe, é incrível esta história: os evangélicos se regozijam com isso
ainda mais do que os judeus. É verdade, é incrível!
Donald Trump, em campanha em Oshkosh, Wisconsin, 18 ago. 2020.

Heresia
As forças ocidentais antichinesas tentam perturbar a estabilidade social de
nosso país e até derrubar o poder político por meio do cristianismo. [...] Nós
apoiamos fortemente o país para que ele traga à Justiça as raras ovelhas
negras que se colocam sob a bandeira do protestantismo [evangélico] a fim
de contribuir com a subversão da segurança nacional.
Xu Xiaohong, presidente do Movimento Patriótico Protestante, uma organização
de culto estatal ligada ao Partido Comunista Chinês (PCC), ao qual os protestantes
chineses devem aderir, 11 mar. 2019 (La Croix, 18 mar. 2019).

Catecúmenos
Estamos, com razão, muito mobilizados em relação ao islamismo, mas, nos
bairros [populares franceses], seria bom prestarmos também um pouco de
atenção no que fazem os evangelistas [sic], que estão amplamente presen-
tes, são menos visíveis, muito proselitistas e ainda interferem no ensino.
Laurence Rossignol, senador socialista, 15 out. 2019.

Concílio
Estamos muito honrados por estar de volta ao Reino da Arábia Saudita pela
segunda vez em menos de um ano. Reunimo-nos com Sua Alteza Real, o
príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, e outras autoridades para discu-
tir terrorismo, paz, liberdade religiosa e direitos humanos.
Joel Rosenberg, escritor israelo-norte-americano, após visita a Jidá à frente de
uma delegação de evangélicos norte-americanos, em 10 de setembro de 2019 –
quase um ano após o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi por um comando
saudita, em Istambul, e algumas semanas após a crucificação e decapitação de
cerca de quarenta opositores sauditas.

(Encontro Social), liderado por cris-
tãos evangélicos muito interessados
em ajudar o presidente mexicano
“em assuntos de vida e de família”.
Em toda parte, os evangélicos mar-
cam pontos. As relações entre as reli-
giões são diretamente afetadas. En-
quanto a Igreja Católica e os
protestantes tradicionais dialogam
regularmente com os diversos repre-
sentantes do islã, os evangélicos, que
apoiam o Estado de Israel, não es-
condem sua hostilidade aos muçul-
manos, que muitas vezes são vistos
simultaneamente como inimigos
potenciais e como uma população a
ser convertida.

*Akram Belkaïd é jornalista do Le Monde
Diplomatique; Lamia Oualalou é jornalista
e autora de Jésus t’aime! La déferlante

évangélique [Jesus te ama! A onda evan-
gélica], Cerf, Paris, 2018.

1 Salvo indicação em contrário, as estatísticas
citadas neste artigo foram retiradas de estu-
dos publicados pelo Pew Research Center,
um organismo norte-americano independente
que dedica grande parte de suas atividades
ao estudo das religiões nos Estados Unidos e
em todo o mundo (www. pewresearch.org).
2 Ler Lamia Oualalou, “Les Évangélistes à la con-
quête du Brésil” [Os evangélicos conquistam o
Brasil], Le Monde Diplomatique, out. 2014.
3 Cf. Jean-Yves Carluer, L’évangelisation. Des
protestants évangeliques en quête de con-
versions [Evangelização. Evangélicos pro-
testantes em busca de conversões], Exelcis,
Charols, 2006.
4 Ler Ingrid Carlander, “La foire aux miracles
des télévangélistes américains” [Nos Estados
Unidos, a feira dos milagres dos televangéli-
cos], Le Monde Diplomatique, jun. 1988.
5 Cf. Évangéliques de France, la course aux
adeptes [Evangélicos da França, a corrida
pelos convertidos], documentário de 52 mi-
nutos de Cyril Vauzelle, LF Production, Mon-
treuil, 2016.

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