Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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16 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


PRÓ-ESTADOS UNIDOS, ANTICOMUNISTAS E HOSTIS À COREIA DO NORTE


Os evangélicos sul-coreanos


na arena política


Bastante conectados aos conservadores norte-americanos e defensores de um anticomunismo feroz,
os evangélicos sul-coreanos foram desorientados pelo encontro, em junho de 2019, do presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump, com seu colega norte-coreano, Kim Jong-un

POR KANG IN-CHEOL*

N


a primavera de 2020, quando a
pandemia de Covid-19 amea-
çava se espalhar pela Coreia do
Sul, os evangélicos conserva-
dores continuaram com suas reu-
niões diárias, exigindo a renúncia do
governo e se recusando a substituir
as cerimônias religiosas presenciais
pelos cultos on-line. Ao contrário dos
budistas e dos católicos, eles conside-
raram que estava em curso um ata-
que à “liberdade de religião” e apro-
veitaram para lançar uma ofensiva
contra o presidente Moon Jae-in, acu-
sado de ser “subordinado à China so-
cialista” (onde o vírus surgiu), com a
intenção de recuperar o terreno per-
dido entre a população.
No outono de 2016, a sociedade
sul-coreana viu-se cindida em dois
campos. De um lado, manifestantes
carregando velas acesas exigiam o
impeachment da presidenta Park Ge-
un-hye; de outro, manifestantes
brandindo a Taegeukgi, a bandeira
nacional, faziam a contramobiliza-
ção, na qual as igrejas protestantes ti-
veram um papel central. O confronto
terminou com a vitória esmagadora
do movimento das velas, do qual par-
ticiparam 17 milhões de cidadãos,^1 e
culminou na renúncia de Park, em 10
de março de 2017, que foi julgada e
presa. Em maio seguinte, Moon Jae-
-in, que personificava o espírito das
vigílias à luz de velas, foi eleito presi-
dente da República.
Apesar de seu baixo quórum, as
manifestações Taegeukgi continua-
ram. Porém a espetacular reaproxi-
mação com a Coreia do Norte após os
Jogos Olímpicos de Inverno de
Pyeongchang, em fevereiro de 2018,
causou grande turbulência. Ainda
mais porque Donald Trump – eleito
graças ao apoio dos protestantes con-
servadores dos Estados Unidos – teve
um papel determinante para essa
reaproximação. O movimento con-
servador recuperou a confiança com
a chegada de Hwang Kyo-ahn à lide-
rança do Partido da Liberdade da Co-
reia (PLC, que sucedeu ao partido
Saenuri, da ex-presidente Park), em

Além disso, em janeiro de 2003,
as forças lideradas pelo CCK realiza-
ram duas vigílias de oração na praça
da prefeitura de Seul, com a partici-
pação de dezenas de milhares de
fiéis. Em seguida, em colaboração
com grupos de direita, organizou no
início de março um encontro com a
presença de mais de 100 mil pessoas


  • uma estreia espetacular no cená-
    rio político, saudada com entusias-
    mo pelos partidos e organizações
    sociais reacionários.
    Alguns militantes de direita for-
    maram um Partido Protestante; ou-
    tros conservadores criaram o grupo
    Nova Direita Protestante. Em cinco
    anos, de 2003 a 2008, eles tiveram um
    sucesso significativo. Afirmando-se
    na oposição, atrapalharam a maioria
    das grandes reformas do governo de-
    mocrata (2003-2008) de Roh Moo-
    -hyun – chamado, assim como seu
    antecessor, de “esquerdista pró-Co-
    reia do Norte”. Após uma intensa
    campanha, ajudaram a eleger Lee
    Myung-bak, um ancião da megachur-
    ch (megaigreja) de Seul (mais de 2 mil
    fiéis), como presidente da República
    (2008-2013), abrindo o caminho para
    uma era de conservadorismo. Na dé-
    cada de 2010, diversas ONGs protes-
    tantes de ultradireita foram criadas.
    A maioria de seus membros são jo-
    vens treinados para se tornarem bra-
    vos “guerreiros da internet”. As igre-
    jas evangélicas sul-coreanas se
    destacam pelo ardor militante e pela
    agressividade. Alguns se envolveram
    inclusive em manipulação política,
    recebendo secretamente o apoio de
    serviços de inteligência do Estado ou
    produzindo e disseminando infor-
    mações falsas, especialmente duran-
    te as campanhas eleitorais.
    Seus eixos políticos são bastante
    simples: preservar e reforçar o anti-
    comunismo, os sentimentos pró-Es-
    tados Unidos e a hostilidade à Coreia
    do Norte; impedir a adoção de leis,
    decretos ou políticas que garantam
    os direitos de minorias sexuais, mu-
    çulmanos, objetores de consciência,
    migrantes e refugiados; recriar uma


fevereiro de 2019. Com esse feroz an-
ticomunista, último primeiro-minis-
tro de Park, as igrejas protestantes vi-
ram-se então como as forças motrizes
da direita radical. Que azar: após a
derrota de seu partido nas eleições le-
gislativas de 15 de abril, Hwang teve
de renunciar.

PROGRESSISTAS ERAM MAIORIA
Por muito tempo, os evangélicos con-
servadores da Coreia do Sul optaram
por se manter longe das questões so-
ciais e do debate político, mas, há
trinta anos, começaram a intervir
nas questões sociais e então a se imis-
cuir nos assuntos políticos.
No início do século X X, a socieda-
de sul-coreana passou a viver uma
competição feroz entre religiões,
embora haja uma porcentagem ex-
cepcionalmente alta de pessoas que
declaram não ter religião (mais da
metade da população). Em 1945,
quando o país se libertou da ocupa-
ção japonesa, ele tinha 100 mil pro-
testantes, apenas 0,5% da popula-
ção. Mas esse número cresceu
rapidamente na década de 1950, so-
bretudo durante a Guerra da Coreia
(1950-1953), a ponto de torná-los a
segunda maior comunidade religio-
sa do país, logo após os budistas. Em
2015, os protestantes coreanos eram
9.676.000, de acordo com o serviço
nacional de estatísticas da Coreia, o
equivalente a 19,7% da população. Já
a proporção daqueles que não decla-
ram filiação religiosa passou de
49,6% em 1995 para 46,9% em 2005,
antes de subir para 56,1% em 2015.
Atualmente, a Igreja protestante sul-
-coreana administra seis canais de
televisão, 109 universidades, 631 es-
colas primárias e secundárias e 196
estabelecimentos médicos. Ela pos-
sui 259 associações.^2
Sua presença também chegou ao
Parlamento, onde a porcentagem de
eleitos dessa denominação oscilou
entre 31% e 41% nas últimas duas dé-
cadas. Além disso, as igrejas protes-
tantes sul-coreanas têm um papel ca-
da vez mais visível no cenário

internacional. Seus missionários co-
meçaram a atuar ali na década de
1980 e hoje são mais numerosos que
os dos Estados Unidos. Em 2009,
eram 20 mil; dez anos depois, 30 mil.
No início da década de 1990, quase
metade das cinquenta maiores igre-
jas protestantes do mundo (em nú-
mero de fiéis) eram sul-coreanas.
Durante o período colonial (1905-
1945), sob a inf luência dos missioná-
rios vindos dos Estados Unidos, gran-
de parte dos protestantes tornou-se
conservadora, até fundamentalista.
A partir da década de 1950, ocorreu
uma série de cismas. O conservado-
rismo teológico combinou-se com o
conservadorismo político, e o pro-
gressismo teológico com o progres-
sismo político. No final desse proces-
so, no início dos anos 1970, os
progressistas representavam menos
de 20% do conjunto dos protestan-
tes.^3 Eles se juntaram ao Conselho
Nacional de Igrejas da Coreia (The
National Council of Churches in Ko-
rea, NCCK) para estimular o movi-
mento pela democracia e derrubar a
ditadura. Por causa desse ativismo,
até o final dos anos 1980 a imagem
dominante do protestantismo no
país era bastante progressista. O en-
volvimento de alguns evangélicos em
movimentos sociais fortaleceu ainda
mais essa reputação.
No entanto, no final de 1989, os
protestantes conservadores, até en-
tão dispersos, reuniram-se sob a égi-
de do Conselho Cristão da Coreia
(Christian Council of Korea, CCK),
que renunciou à antiga doutrina que
separava a Igreja do mundo secular.
Desde o início, o CCK superou clara-
mente o NCCK em número de fiéis e
em recursos. Tanto que, no meio da
década de 1990, aproveitando as difi-
culdades financeiras do NCCK, o
CCK assumiu o controle e sufocou
seu espírito. A partir dos anos 2000,
as igrejas protestantes tornaram-se
conservadoras, sem, no entanto,
adentrar a arena política (em julho de
2020, o CCK tinha 55 igrejas, contra
nove da NCCK).

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