Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17


tendência favorável ao regime que
apoiam, especialmente durante as
eleições; proteger e promover os in-
teresses das igrejas no que diz res-
peito à gestão das escolas e institui-
ções de proteção social, à tributação
do clero etc.
Se o anticomunismo já fazia parte
da doutrina social do protestantismo
sul-coreano na década de 1930, em
2013 a direita inventou um persona-
gem que vai além: o “homossexual
esquerdista pró-Coreia do Norte”. Ele
se baseia na ideia de que muitas mi-
norias sexuais são de esquerda, ou de
que a esquerda se alinha com as con-
cepções dessas minorias. Após o se-
questro, em julho-agosto de 2017, de
23 missionários protestantes no Afe-
ganistão e o assassinato de dois deles,
outra teoria conspiratória apareceu:
a “islamização da Coreia do Sul”, gra-
ças à aliança entre muçulmanos e
“esquerdistas” – isto é, governos de
centro e todos aqueles que não são de
direita. A tese não se relaciona à in-
f luência do islã na sociedade sul-co-
reana – extremamente marginal, já
que o país tem 150 mil muçulmanos
em uma população de mais de 51 mi-
lhões de habitantes –, porém se liga à
teologia messiânica do protestantis-
mo sul-coreano.

Este último não deixou de lado
sua obsessão pela Coreia do Norte.
Desde meados da década de 1990, a
direita protestante prepara a “con-
quista do Norte pela evangelização”,
prevendo, em caso de colapso do re-
gime – seu maior desejo –, a criação
de mais de 10 mil igrejas em dez anos.
Missionários são enviados para a
fronteira sino-norte-coreana, e não é
raro que grupos de desertores norte-
-coreanos, apoiados por partidários
da direita protestante, enviem folhe-
tos de propaganda criticando o regi-
me de Pyongyang em grandes balões
perto da fronteira.
Essa militância próxima do milita-
rismo baseia-se em diversas dinâmi-
cas religiosas, transmitidas para mui-
tas pessoas pela Igreja protestante
conservadora norte-americana, so-
bretudo nos anos 1990 e 2000: a visão
de um mundo dividido entre “nós” e
“os terroristas”, o conceito de guerra
espiritual, a fé escatológica fundada
no pré-milenarismo – doutrina que
afirma que Jesus retornará à terra,
matará Satanás e reinará por mil anos.
Isso permite oferecer aos crentes
uma identidade de guerreiros de
Deus, com a previsão da chegada do
anticristo e seu domínio do mundo,
ou seja, a luta final entre o Bem e o

Mal.^4 Da mesma forma, o retorno do
povo judeu a Jerusalém é visto como
um sinal do fim dos tempos. Isso ex-
plica por que as manifestações da di-
reita sul-coreana, desde 2017, costu-
mam exibir a bandeira de Israel ao
lado da Taegeukgi e, às vezes, das lis-
tras e estrelas norte-americanas. Até
o ano passado, não era raro ver pasto-
res recitando orações em inglês ou
enviando mensagens de gratidão ao
presidente dos Estados Unidos, que
se empenhava em derrubar o regime
norte-coreano. Em abril de 2003, em
resposta a essas orações, o coman-
dante em chefe das forças norte-a-
mericanas, Leon J. LaPorte, visitou o
pastor David Yonggi Cho, fundador
da Igreja Yoido (Yoido Full Gospel
Church) e um dos mais poderosos lí-
deres da direita protestante sul-co-
reana. Em agosto do mesmo ano, o
presidente George W. Bush festejou,
em uma carta ao CCK, “o espírito de
amizade entre a Coreia do Sul e os Es-
tados Unidos durante as grandes vi-
gílias de oração realizadas em Seul”.^5
Para os evangélicos sul-coreanos,
os Estados Unidos são ao mesmo
tempo a “pátria da fé”, que evangeli-
zou e civilizou o povo (mais de 87%
dos missionários protestantes que
vieram para a Coreia entre 1893 e

1983 eram norte-americanos), os sal-
vadores do país – o que por si só já
merece elogios e gratidão – e os salva-
dores do mundo. Desse modo, consi-
deram necessário tomar o país como
exemplo e com ele manter, a qual-
quer custo, estreitas relações de coo-
peração. Segundo uma mentalidade
religiosa e colonial que estabelece
uma relação hierárquica com os Es-
tados Unidos, o povo norte-america-
no é um “povo eleito”. Em compensa-
ção, para a direita protestante dos
Estados Unidos, o protestantismo
sul-coreano tem um valor periférico.
Esse desequilíbrio não impediu
que as relações se consolidassem.
Existem mais de 4 mil igrejas protes-
tantes sul-coreanas nos Estados Uni-
dos, que efetivamente garantem uma
geminação doutrinária. Visitas e reu-
niões mútuas são frequentemente or-
ganizadas. Pessoas formadas em es-
colas teológicas conservadoras
norte-americanas ocupam cargos
importantes na Coreia do Sul, como
pastores ou professores em grandes
igrejas ou em seminários de direita.
Por meio desse pessoal familiarizado
com os métodos norte-americanos,
foram difundidas teologias como o
fundamentalismo, o apocalipse pré-
-milenarista e a guerra espiritual.

Os evangélicos conservadores da Coreia do Sul começaram a intervir nas questões sociais e então a se envolver em política

© Kim Hong-Ji/Reuters


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