Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

18 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


POR DENTRO DA REDE RECORD


O amém à


segunda maior


TV brasileira


Nada melhor que uma rede de televisão para
promover sua Igreja e um rebanho fiel para turbinar
os rendimentos de sua empresa audiovisual...

POR ANNE VIGNA*, ENVIADA ESPECIAL

S


ão cinco e meia da manhã, na
sede do 22º Batalhão da Polícia
Militar do Rio de Janeiro, e
membros de uma equipe de te-
levisão vestem coletes à prova de ba-
las. Entre eles está o apresentador de
jornalismo Ernani Alves, do programa
Cidade Alerta Rio, que vai ao ar à tarde,
de segunda a sábado. E do que ele tra-
ta? Do crime, visto por todos os ângu-
los possíveis: durante duas horas, sem
nenhuma ordem ou hierarquia, se-
guem-se reportagens que vão do mais
sórdido estupro até um simples roubo.
O tom é sempre sensacionalista, e os
mocinhos estão sempre de uniforme.
O Cidade Alerta é o programa de maior
audiência da Record, segunda maior
emissora de TV do Brasil em termos de
cobertura territorial.
De acordo com um relatório da
ONG Andi – Comunicação e Direitos,
elaborado em parceria com o Minis-
tério Público Federal,^1 o programa é
recordista em infrações à lei: desres-
peito à presunção de inocência e a de-
cisões judiciais, exposição de meno-
res, incitação ao crime, discurso de
ódio e preconceito, violação ao direi-
to ao silêncio, tortura psicológica etc.
Para Olívia Bandeira, antropóloga e
coordenadora do coletivo de comuni-
cação Intervozes, “seu discurso é
‘bandido bom é bandido morto’. Eles
ignoram a violência policial e defen-
dem intervenções agressivas. Em su-
ma, o mesmo discurso sustentado há
anos pelo presidente Jair Bolsonaro”.
A grade de programação da Re-
cord, porém, não se limita a “bandi-
dos” e estupradores: ela também
conta com os pastores da Igreja Uni-
versal do Reino de Deus, que, em in-
tervalos regulares, convidam os es-
pectadores a orar, enquanto meditam

sobre o drama que acabaram de ver.
Isso porque a Record pertence a Edir
Macedo, fundador e bispo dessa
igreja, a terceira maior Igreja evan-
gélica do Brasil (em número de fiéis),
presente em 95 países.
Sob uma aparência ascética,
Edir Macedo, de 75 anos, é na verda-
de um poderoso homem de negó-
cios, cujo patrimônio, em 2015, foi
avaliado pela revista Forbes em
R$ 1,9 bilhão. Em 1977, quando
criou seu primeiro templo em uma
agência funerária desativada, Edir
Macedo logo se interessou em che-
gar ao rádio, depois à TV, para atrair
fiéis. Em 1989 comprou a Record,
criada em 1953, porém endividada e
mal administrada, instando seus
fiéis a contribuir para levantar os
US$ 45 milhões de que precisava. A
justiça debruçou-se sobre esse caso
durante trinta anos, até que ele
prescreveu, em 2019, sem que nunca
se conseguisse determinar a legali-
dade da operação. “Edir Macedo
vendeu aos fiéis a ideia de ter uma
televisão evangélica, livre de porno-
grafia e de álcool. Mas, ao adquiri-
-la, fez dela uma TV comercial como
qualquer outra, cuja meta era des-
tronar a Rede Globo”, a maior do
país, explica o jornalista Gilberto
Nascimento, autor de uma investi-
gação sobre Edir Macedo.^2
No início da manhã e tarde da
noite, a programação da Record é re-
servada exclusivamente aos cultos
da Igreja Universal. Esse tempo de
antena não é gratuito, e a estrutura
evangélica carismática é um cliente
generoso da Record: embora relega-
da aos horários menos nobres, a vei-
culação desses programas represen-
taria 30% da receita do canal, um

Não admira que os evangélicos dos
dois países pareçam irmãos gêmeos:
forte participação eleitoral, coalizão
com forças políticas de direita, anti-
comunismo, discriminação contra
homossexuais, rejeição de refugiados
e imigrantes, posições pró-Israel e
antimuçulmanas etc. Isso sem falar
no apoio à pena de morte, que as dife-
rencia de outras igrejas ocidentais.
No entanto, existem algumas ques-
tões políticas que a direita protestante
sul-coreana aborda com menos fre-
quência e com menos paixão do que
sua contraparte do outro lado do Pací-
fico, como o direito ao aborto, a pes-
quisa com células-tronco embrioná-
rias, as drogas, a pornografia e o
feminismo. A direita protestante sul-
-coreana não participa do debate sobre
o ensino do criacionismo ou sobre a
oração nas escolas públicas. E, en-
quanto os militantes dos Estados Uni-
dos privilegiam a luta contra o islã após
os ataques do 11 de Setembro, os sul-
-coreanos continuam obcecados pelo
confronto com o vizinho do Norte.


SABOTAGEM DOS ACORDOS DE PAZ
É compreensível que o histórico en-
contro entre Moon Jae-in, Kim Jong-
-un e Donald Trump em Panmunjom,
no dia 30 de junho de 2018, tenha pro-
vocado certo constrangimento em
suas fileiras. Embora tenham sauda-
do a iniciativa, eles logo alertaram
contra o que chamam de “oferta de
paz enganosa de Pyongyang”. Como
escreve Park Chansoo, colunista do
diário de centro-esquerda Hankyo-
reh: “Os conservadores do Sul devem
se sentir traídos, pois esperavam que
Trump adotasse medidas de retalia-
ção contra a Coreia do Norte”.^6 Park se
pergunta se a direita protestante não
buscará escolher – assim como al-
guns intelectuais de extrema direita,
que pedem aos conservadores uma li-
nha política menos dependente dos
Estados Unidos – uma doutrina que
não dependa de Trump ou da direita
protestante norte-americana.
Por enquanto, porém, o encontro
de Panmunjom serviu para nada
mais além de fotos – o que é ótimo
para a campanha eleitoral de Trump:
nenhum progresso significativo foi
feito nas relações entre os Estados
Unidos e a Coreia do Norte, ou mes-
mo entre as duas Coreias. A atmosfe-
ra de exaltação e esperança que rei-
nava na península pouco a pouco se
dissipa, para grande deleite da direita
protestante coreana. O sentimento
de traição que ela experimentou em
relação a Trump foi transformado em
alívio. Em outubro de 2019, o pastor
Jeon Kwang-hoon, presidente do
CCK, lançou um Movimento de Luta
Nacional pela Renúncia do Presiden-
te Moon, instalando tendas em frente
à Casa Azul, o palácio presidencial,


onde reúne com frequência milhares
de pessoas, ao que chama de “assem-
bleias do Eterno no deserto”. No en-
tanto, após o surgimento de vários
casos de Covid-19, a opinião pública
tornou-se cada vez mais desfavorável
a essas manifestações. As autorida-
des de Seul aproveitaram para encer-
rar a ocupação do local. Preso e de-
pois libertado sob fiança em abril, o
pastor não desistiu e, junto com a di-
reita, retomou sua cruzada ideológi-
ca contra os três grupos de inimigos
identificados nas últimas décadas: os
partidos e organizações à esquerda,
os hereges (o que inclui todas as ou-
tras religiões) e os homossexuais.
Após o fracasso nas eleições legis-
lativas de abril, a direita evangélica
retomou sua campanha de balões de
propaganda contra a Coreia do Norte.
E com ainda mais zelo, já que Trump
e os conservadores norte-america-
nos não mostram nenhuma disposi-
ção para negociar com Pyongyang.
Em junho de 2020, entidades como os
Combatentes pela Coreia do Norte Li-
vre (Fighters for Free North Korea),
uma organização de desertores nor-
te-coreanos que vivem em Seul, e o
grupo protestante Voz dos Mártires
da Coreia (The Voice of the Martyrs
Korea) lançaram panf letos de propa-
ganda do outro lado da fronteira,
apesar da opinião pública extrema-
mente desfavorável a esse tipo de
provocação. A campanha provocou o
furor de Pyongyang, que a usou de
pretexto para demolir o gabinete de
ligação Norte-Sul criado após o en-
contro em Panmunjom.^7
A direita protestante parece acre-
ditar que essas ações agressivas não
apenas se conformam com sua dou-
trina, mas também servem para
manter seu impacto e presença polí-
tica. No entanto, parece claro que o
futuro de todas as igrejas protestan-
tes coreanas está obscurecido por es-
sa política de ódio que apenas reforça
seu isolamento social.

*Kang In-Cheol é professor da Universi-
dade Hanshin (Coreia do Sul) e autor de
Protestantismo coreano e anticomunismo
(em coreano), Jungsim, Seul, 2007.

1 “Ler Sun Ilk-kwon, “‘Révolution des bougies’ à
Séoul” [Em Seul, a “Revolução das Velas”],
Le Monde Diplomatique, jan. 2017.
2 “Religião na Coreia – 2018”, relatório do Mi-
nistério da Cultura, Esportes e Turismo (em
coreano), Seul, 2018.
3 “Kang In-Cheol, Resistência e rendição: regi-
mes militares e religião (em coreano), Hanshin
University Press, Osan, 2013.
4 “Ler Ibrahim Warde, “Il ne peut y avoir de paix
avant l’avènement du Messie” [Não pode ha-
ver paz antes da chegada do Messias], Le
Monde Diplomatique, set. 2002.
5 Carta publicada no site do CCK, 2003.
6 Park Chansoo, “Do conservadorismo pró-Es-
tados Unidos ao conservadorismo pró-Japão”
(em coreano), Hankyoreh, Seul, 11 jul. 2019.
7 Ler Martine Bulard e Sun Ilk-kwon, “La politi-
que du rayon de soleil” [A política do raio de
sol], Le Monde Diplomatique, jun. 2018.

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