Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19


maná financiado pelos fiéis da Igre-
ja. Assim, em dez anos, cerca de
R$ 2,3 bilhões foram transferidos da
Universal para a Record, embora os
programas passem muito tarde, em
um horário normalmente muito ba-
rato. Para Nascimento, só a ausência
de regulamentação da mídia no Bra-
sil pode explicar tal relação: “Edir
Macedo justifica a locação de horá-
rios à Universal garantindo que a Re-
cord é independente da Igreja e que
não há nenhuma razão para que ela
não pague. Exceto o fato de que isso
não é verdade: a Record não é inde-
pendente da Universal”.
Em trinta anos, o grupo Record
cresceu ao lado da Igreja Universal,
que, em 2010, segundo o censo reli-
gioso realizado pelo IBGE, tinha
1,8 milhão de fiéis, mais de 5 mil tem-
plos e 10 mil pastores no Brasil (ler ar-
tigo na pág. 14). O grupo Record tor-
nou-se um império midiático com
uma rede de rádios, dezessete canais
de televisão, quatro portais de inter-
net, entre eles uma plataforma de ví-
deos evangélicos (UniverVideo) e o
jornal Correio do Povo, que tem a no-
na maior tiragem do Brasil. O grupo
também é dono de 49% do capital do
Banco Renner e administra uma cen-
tena de empresas ligadas à logística
da produção de conteúdo audiovisual
(transporte, seguro, alimentação
etc.). Por sua vez, a Igreja possui um
grupo de 64 rádios (Rede Aleluia), que
cobrem 75% do território brasileiro,
uma editora (Unipro), uma gravadora
(Line Records), uma TV via internet e
um jornal gratuito (Folha Universal),
com tiragem diária de 2 milhões de
exemplares – enquanto o maior jor-
nal pago do Brasil, a Folha de S.Paulo,
chega a 330 mil exemplares...

Em 2019, com o início do mandato
de Jair Bolsonaro, o grupo Record
passou a ser o grande beneficiário dos
investimentos em publicidade do go-
verno federal, de acordo com uma in-
vestigação da Pública, Agência de Jor-
nalismo Investigativo.^3 Até então, esse
orçamento era distribuído em função
da audiência. Em 2019, a Record rece-
beu R$ 30 milhões em publicidade,
muito mais do que duas outras igrejas
evangélicas: R$ 741 mil para as mídias
da Sara Nossa Terra e R$ 472 mil para
a Assembleia de Deus. Já a Rede Globo
passou de 48,5% do investimento pu-
blicitário do governo federal em 2007
para 16,3% em 2019. Mesmo assim,
continua sendo o canal de televisão a
que os brasileiros mais assistem, com
35% da audiência. A Record, que con-
ta com uma média de 13,1% dos teles-
pectadores, viu a verba pública que
recebe do Estado passar de 26,6% em
2017 para 42,6% em 2019.
O apoio da Record à candidatura
presidencial de Jair Bolsonaro foi tão
pouco discreto que chegou a ser in-
vestigado pela Justiça Eleitoral, que
acabou não punindo o candidato.
Desconfortável nos debates, Bolsona-
ro simplesmente se recusou a enfren-
tar seu concorrente no segundo tur-
no, Fernando Haddad, do PT. Ele
também não participou do último de-
bate do primeiro turno com os outros
sete candidatos, justificando a ausên-
cia por uma “indisposição” após a fa-
cada que sofrera um mês antes. No
entanto, no mesmo horário em que
esse debate presidencial era realizado
na Rede Globo, a Record transmitia
uma entrevista exclusiva de 30 minu-
tos com Jair Bolsonaro. “Ele teve a
oportunidade de falar sobre suas
ideias e atacar seus adversários sem

que houvesse ninguém para contes-
tá-lo. Para Bolsonaro, que tinha ape-
nas 10 segundos de tempo de antena
no horário oficial, por pertencer a um
pequeno partido, essa entrevista foi
um presente”, avalia Mauricio Stycer,
colunista e especialista em mídia da
Folha de S.Paulo. Poucos dias antes
dessa entrevista “caída do céu”, Edir
Macedo havia declarado seu apoio a
Bolsonaro nas redes sociais.

Quando se tornou dono da Re-
cord, Edir Macedo imediatamente
entrou no jogo político, primeiro
apoiando candidatos a cargos locais
em São Paulo, em seguida candidatu-
ras federais e presidenciais. Em 2005,
durante o primeiro mandato de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), ele fundou
um partido político, os Republicanos
(PRB), que logo entrou no governo.
“Edir Macedo apoiou todos os go-
vernos, qualquer que fosse sua linha
política”, resume Suzy dos Santos,
professora de Comunicação da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro.
“Ele lutou contra Lula até a vitória,
quando então seu partido se tornou
parte da coalizão governista. Ele
também governou com Dilma Rous-
seff até sua destituição, em 2016,
quando, em nome de Deus e da famí-
lia, os deputados de seu partido vota-
ram pelo impeachment. Imediata-

mente eles encontraram um lugar no
governo de Michel Temer, vice-presi-
dente de Dilma, que a sucedeu. Ago-
ra, com Jair Bolsonaro, a proximida-
de ideológica é muito mais forte.”
No livro que escreveu com a cole-
ga Janaine Aires sobre as relações
entre a mídia e a política,^4 Suzy mos-
tra que a imensa maioria dos eleitos
pelo PRB são membros da Igreja
Universal ou figuras midiáticas do
grupo Record, quando não as duas
coisas ao mesmo tempo: “A Igreja
Universal, a TV Record e o PRB, ape-
sar de suas notórias ligações, geral-
mente se apresentam como entida-
des independentes. Na verdade, o
grupo Record é um poderoso tram-
polim eleitoral para o partido”. Em
2006, o PRB conseguiu eleger ape-
nas um deputado federal. Agora tem
a oitava bancada parlamentar, com
32 deputados: catorze deles foram
ou ainda são figuras do grupo Re-
cord. O partido também governa a
cidade do Rio de Janeiro desde 2016,
sob a liderança de Marcelo Crivella,
ex-ministro de Dilma, sobrinho de
Edir Macedo, bispo da Universal e
cantor gospel – profissão que lhe ga-
rantiu inúmeras aparições nas mí-
dias do grupo.
Por fim, o presidente do PRB,
Marcos Pereira, que por muito tem-
po dirigiu a Record e foi ministro da
Indústria do governo Temer, é agora
vice-presidente da Câmara dos De-
putados, a cuja presidência concor-
rerá em 2021 – um cargo-chave no
Brasil, já que todos os processos de
impeachment presidencial passam
por ele. Com Pereira no comando,
Bolsonaro teria pouco com que se
preocupar em relação aos cerca de
cinquenta processos que já foram
iniciados contra ele.
Em março deste ano, dois filhos
do chefe de Estado, Flavio Bolsonaro
(senador) e Carlos Bolsonaro (verea-
dor do Rio de Janeiro), entraram no
PRB, assim como sua mãe, Rogéria
Braga, cotada como vice de Crivella
nas eleições municipais de 2020. A
aliança das famílias Bolsonaro e
Macedo seria então oficialmente se-
lada, na cidade dominada pelo Cris-
to Redentor.

*Anne Vigna é jornalista (Rio de Janeiro).

1 “Violações de direitos na mídia brasileira”,
Andi – Comunicação e Direitos, em parceria
com o coletivo Intervozes e a Procuradoria Fe-
deral dos Direitos do Cidadão, Brasília, 2016.
2 O Reino, Companhia das Letras, São Paulo,
2019.
3 Mariama Correia e Bruno Fonseca, “Governo
gastou mais de R$ 30 milhões em rádios e
TVs de pastores que apoiam Bolsonaro”, Pú-
blica, São Paulo, 15 jun. 2020. Disponível em:
apublica.org.
4 Janaine Aires e Suzy dos Santos, Sempre foi
pela família: mídias e políticas no Brasil,
Mauad, Rio de Janeiro, 2017.

© Wikimedia


Imagem do Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, ligada à TV Record

“A Igreja Universal, a
TV Record e o PRB,
apesar de suas notórias
ligações, geralmente se
apresentam como enti-
dades independentes”

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