Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23


cotidianas que passam por essa pla-
taforma, o aplicativo de mensagens
mais popular na África e proprieda-
de da companhia Facebook, ritmam
todos os domínios da vida local. Por
meio de textos, fotos e vídeos, cerca
de 200 milhões de africanos se co-
municam, se informam e mantêm
um contato imediato com seus pa-
rentes dispersos pelo território. Con-
trariamente às outras regiões do
mundo onde se utilizam cada vez
mais diversos serviços de mensagem
on-line, na África o domínio do
WhatsApp é absoluto, colocando es-
sa ferramenta em uma situação de
quase monopólio.
Alguns tipos de interação social
entre africanos devem sem dúvida
perdurar, a despeito das distâncias e
dos movimentos impostos pela ne-
cessidade de sobrevivência. Em mui-
tas comunidades do oeste africano,
por exemplo, onde a procura por tra-
balho sazonal e a migração em busca
de emprego obrigam homens e mu-
lheres a deixar suas casas, os ser-
mões dos imãs de suas comunidades
de origem os seguem em suas pere-
grinações. Uma cena, há alguns me-
ses, no hall do aeroporto de Lomé, no
Togo, ilustra essa dinâmica: uma co-
merciante maliana a caminho da Re-
pública Centro-Africana escuta o
sermão de seu imã em Bamako. No
mesmo aeroporto, uma comerciante
congolesa acompanha o sermão de
um padre de Kisangani, sua região de
origem que ela deixara alguns dias
antes para compras em Lomé. Am-
bas utilizam o WhatsApp e a conexão
gratuita do aeroporto. Cenas idênti-
cas, de Johannesburgo a Nairóbi, ofe-
recem o retrato de muitos africanos
em deslocamento pelo continente,
mas seguindo “a atualidade” local e
familiar em todos os detalhes, em
contextos em que não existe uma im-
prensa estabelecida. Há duas déca-
das, a preservação de tais relações
sociais era difícil, cara e reservada
aos mais ricos.
Três tendências principais dese-
nharão as evoluções políticas ligadas
às redes sociais. A primeira é o cresci-
mento do número de africanos co-
nectados à rede. Se apenas 39% da
população do continente está on-li-
ne, contra ao menos 50% em outras
regiões do mundo, esse percentual
poderá aumentar rapidamente. Entre
2010 e 2020, o número de pessoas co-
nectadas passou de menos de 5 mi-
lhões para mais de 500 milhões, se-
gundo o site Internet World Stats
(IWS). Mais determinante ainda, os
investimentos em curso sugerem que
a aceleração deverá continuar em um
ritmo mais rápido. Em 17 de maio de
2020, um consórcio de oito socieda-
des – Facebook, Orange, China Mobi-
le International, MTN (África do Sul),


STC (Arábia Saudita), Vodaphone
(Grã-Bretanha), Telecom Egypt e
West Indian Ocean Cable Company
(Ilhas Maurício) – iniciou a constru-
ção de um cabo submarino de 37 mil
quilômetros batizado 2Africa, que
decuplicará o acesso do continente à
internet até 2024.

ALVOS DE DISCURSOS VIOLENTOS
A segunda tendência é a migração
mais acentuada do debate político
africano para plataformas digitais.
Além do descrédito que sofre a im-
prensa tradicional, há a relativa faci-
lidade de acesso às redes sociais. No
Mali, a campanha legislativa de 2018
foi lançada nessas redes e nas cida-
des e vilarejos. Finalmente, a terceira
tendência, a mais determinante, é a
atitude das companhias proprietá-
rias das plataformas: elas procurarão
preservar a integridade de escrutí-
nios eleitorais muitas vezes frágeis
ou, ao contrário, aplicarão na África
a lógica que lhes assegura confortá-
veis lucros em outros lugares, isto é, a
exploração de dados pessoais dos
usuários? O futuro das eleições, às
vezes acompanhadas de escaladas
de violência, depende muito das res-
postas a essas questões. “Em um fu-

turo imediato”, adverte um relatório
da Fundação Kofi Annan, “as elei-
ções nas democracias dos países do
sul serão alvo de discursos violentos,
de desinformações, de ingerências
exteriores e de manipulações sobre
as plataformas digitais.”^12
A partir do momento em que uma
campanha de manipulação está ao
alcance das mãos dos mais ricos e que
um mercado negro ad hoc, vendendo
“cliques”, “likes” e comentários sob
medida, existe, para os candidatos
menos fortunados a possibilidade
que três décadas de escrutínios mul-
tipartidários na África possam termi-
nar em fraudes eleitorais maciças de
um novo tipo é muito concreta.

*André-Michel Essoungou é ensaísta e
funcionário internacional.
1 Ler Franck Pasquale, “Mettre fin au trafic des
données personnelles”[É preciso acabar
com o tráfico de dados], Le Monde Diploma-
tique, maio 2018.
2 Cf. R. Kelly Garret, “Social media’s contribu-
tion to political misperceptions in U.S. presi-
dential elections” [A contribuição da mídia
social para equívocos políticos nas eleições
presidenciais dos EUA], Plos One, São Fran-
cisco, 2019. Disponível em: journals.plos.org.
3 Cf. “The Cambridge Analytica files” [Os ar-
quivos Cambridge Analytica], dossiê on-line
do The Guardian, Londres. Disponível em:
guardian.com.

4 Cf. Simona Weinglass, “Who is behind Is-
rael’s Archimede group, banned by Facebook
for election fakery? ” [Quem está por trás do
grupo Archimede, de Israel, banido do Face-
book por fraude eleitoral?], The Times of Is-
rael, Jerusalém, 19 maio 2019.
5 Joe Parkinson, Nicholas Bariyo e Josh Chin,
“Huawei technicians helped african govern-
ments spy on political opponents” [Técnicos
da Huawei ajudaram governos africanos a es-
pionar oponentes políticos], The Wall Street
Journal, Nova York, 15 ago. 2019.
6 Cf. Martin Ndela e Winston Mano (eds.), So-
cial media and elections in Africa, v.1, Palgra-
ve MacMillan, Londres, 2020.
7 André-Michel Essoungou, “Young Africans
put new technologies to new uses” [Jovens
africanos dão novos usos a novas tecnolo-
gias], United Nations Africa Renewal, Nova
York, abr. 2010.
8 Collaboration on international ICT Policy in East
and Southern Africa (CIPESA), State of Inter-
net freedom in Africa 2019, Kampala, set. 2019.
9 Cf. Samuel Woodhams e Simon Migliano,
“The Global cost of internet shutdowns in
2019” [O custo global do desligamento da
internet em 2019], Top10vpn, Londres, 7 jan.


  1. Disponível em: http://www.top10vpn.com.
    10 Babatunde Okunoye, “In Africa, a new tactic to
    suppress online speech: taxing social media”
    [Na África, uma nova tática para suprimir o
    discurso on-line: taxar as mídias sociais],
    Council on Foreign Relations, Washington,

  2. Disponível em: http://www.cfr.org.
    11 Ler Sabine Cessou, “Fièvre numérique au
    Kenya” [Febre digital no Quênia], Le Monde
    Diplomatique, dez. 2018.
    12 “Protecting electoral integrity in the digital
    age” [Protegendo a integridade eleitoral na
    era digital], Kofi Annan Commission on Elec-
    tions and Democracy in the Digital Age, Gene-
    bra, janeiro de 2020.


Os eleitores da Nigéria e Quênia serviram, sem seu conhecimento, como cobaias da Cambridge Analytica

© Unsplash

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