Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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24 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


NA LÍBIA, ESBOÇA-SE UMA SITUAÇÃO “SÍRIA”, COM UMA DIVISÃO DO PAÍS EM ZONAS DE INFLUÊNCIA


Atolado na guerra civil, o conflito líbio internacionaliza-se com a proliferação de mercenários, cujo papel ultrapassa com
folga o de simples forças auxiliares. A Rússia e a Turquia parecem estar em polos opostos, cada uma apoiando um
campo diferente. Entretanto, atuam em sincronia e sonham em dividir entre elas os espólios de uma Líbia fraturada

POR JEAN-MICHEL MOREL*

Líbia, um condomínio russo-turco?


D


esde o levante popular de feve-
reiro de 2011 seguido da inter-
venção aérea das forças da Or-
ganização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) e da morte do
seu chefe de Estado, Muamar Kadafi, a
Líbia está entregue ao caos, à fratura e
às ingerências externas. As três re-
giões tradicionais do país se transfor-
maram em agrupamentos fratricidas.^1
No leste, a Cirenaica, sede da Câmara
dos Representantes em Benghazi, se
tornou o feudo do marechal autopro-
clamado Khalifa Haftar, encabeçando
o que ele chama de Exército Nacional
Líbio (ENL). No oeste, na Tripolitânia,
reina o mal nomeado Governo do
Acordo Nacional (GAN), reconhecido
pela ONU e cuja coloração política o
aproxima do Irmandade Muçulmana.
Já na região multiétnica do Fezzan no
sul, território de onde se extrai um
quarto do petróleo líbio, os milicianos
toubous reinam como chefes, dividin-
do-se em dois campos.
O GAN se beneficia do suporte da
Turquia e, em um grau moderado, do
Catar, sem esquecer o apoio discreto
da Itália e da Alemanha. A maior par-
te de suas forças é composta por mi-
licianos da coalizão Fajr Libya (Auro-
ra da Líbia). No campo adversário,
Khalifa Haftar, ex-oficial do Exército
de Kadafi antes de sua deserção no
fim dos anos 1980, reúne em torno de
si milicianos locais, assim como mer-
cenários do Sudão e do Chade. Seus
padrinhos estrangeiros são o Egito,
os Emirados Árabes, a Arábia Saudita


  • uma frente anti-Irmandade Muçul-
    mana – e principalmente a Rússia,
    que deseja ampliar sua inserção me-
    diterrânea. A isso se acrescenta a
    França, que, sem romper com Trípo-
    li, preferiria ver o campo do mare-
    chal Haftar ganhar.^2 Em julho de
    2019, a descoberta de mísseis france-
    ses perto de Trípoli, abandonados
    pelas tropas derrotadas do marechal
    Haftar, já revelavam esse posiciona-
    mento ambíguo.^3 Um ano depois, a
    descoberta de valas comuns em
    Tarhouna, onde milícias pró-Haftar
    foram culpadas de abusos, tornou o
    apoio ao marechal cada vez mais
    problemático.^4 Enquanto membro
    permanente do Conselho de Segu-
    rança, Paris deveria obedecer à lega-


lidade internacional, apoiando o Go-
verno do Acordo Nacional, o único
reconhecido pela ONU.
A França se encontra em oposição
frontal com a Turquia, que, desde o
início deste ano, está muito presente
na Líbia. Para Ancara, o interesse por
essa região vem desde o século XVI,
quando os otomanos ocuparam o
Magreb, criando três províncias cujas
capitais eram Argel, Túnis e Trípoli.
Mesmo não tratando hoje de recons-
tituir na África do Norte o império
despedaçado em 1920, o presidente
turco, Recep Tay yip Erdogan, não he-
sita em evocar regularmente sua
grandiosidade. E multiplica as oca-
siões para demonstrar as capacida-
des de projeção de seu Exército para
além de suas fronteiras: invasões no
norte da Síria, intervenção no Curdis-
tão iraquiano e na Líbia, projeto de
uma base no Iêmen, instalação mili-
tar no Catar e ameaça de se dirigir
militarmente ao lado do Afeganistão
no conf lito do Alto Karabakh. Tudo
isso manifesta uma vontade de ex-
pansão da área de inf luência turca.
Em 2018, Yeni Akit, um jornal pró-
-governamental, depois de ter enu-

merado dez países onde se encon-
tram soldados turcos, não hesitava
em afirmar: “A Turquia retorna às
suas terras otomanas”. Esse ardor ex-
pansionista se concretiza também
pela reativação de uma doutrina ma-
rítima imaginada em 2006 por Cem
Gurdeniz, um almirante aposenta-
do, e batizada de Mavi Vatam (Pátria
Azul). Esta concede a prioridade à se-
gurança, a despeito da diplomacia –
o apoio de Ancara ao GAN ilustra is-
so perfeitamente.

O SUCESSO DO
“SULTÃO DE ANCARA”
A Líbia, atolada em uma guerra civil
que se eterniza, apesar das conferên-
cias de cessar-fogo (a última aconte-
ceu em Berlim em janeiro de 2020),
parece uma conquista fácil para uma
potência regional determinada. Um
“troféu” que ajudaria o presidente Er-
dogan a fortalecer sua autoridade^5
diante de uma população cada vez
mais crítica – como testemunha a
derrota do AKP, partido que o levou
ao poder, nas últimas eleições muni-
cipais, em março de 2019, quando a
oposição ganhou as prefeituras de Is-

tanbul e Ancara. Sinal dessas dificul-
dades, o AKP conheceu este ano duas
cisões que dão prova das importantes
dissenções no seio da formação pre-
sidencial. Como precisa, no site Dak-
tilo 1984, o jornalista turco Fehim
Tatstekin: “As políticas internas e ex-
ternas da Turquia são misturadas. A
política externa serve de combustível
para a interna” (21 jun. 2020).
Aos olhos de Ancara, a Líbia re-
presenta também uma “base de lan-
çamento” para sua extensão econô-
mica e ideológica via a retomada da
África subsaariana das redes do pre-
gador Fethullah Gülen, antigo aliado
de Erdogan até o golpe de Estado fra-
cassado de 2016. Para se fixar no ter-
ritório líbio, o presidente turco não
negligencia nenhum meio: financei-
ro, a despeito de sua economia vul-
nerável; humano, essencialmente
jihadistas que combateram durante
a invasão do Rojava;^6 e militar, como
a instalação de sistemas antiaéreos
MIM-23Hawk e o uso dos drones
Bayraktar TB2, que, segundo obser-
vadores, fizeram a diferença nos re-
centes enfrentamentos com as tro-
pas do ENL.

A Líbia, em guerra civil, apesar das conferências de cessar-fogo, parece uma conquista fácil para uma potência regional

© Esam Omran Al-Fetori/Reuters

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