Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25


Até o momento, tudo parece dar
certo para o “sultão de Ancara”. Em
27 de novembro de 2019, em acordo
com Fayez al-Sarraj, primeiro-mi-
nistro do GAN, ele redesenhou as zo-
nas econômicas exclusivas (ZEE) do
planalto continental líbio a fim de
que a Turquia tenha acesso a blocos
de exploração e prospecção do gás
natural no Mediterrâneo oriental,
em zonas que, no entanto, são rei-
vindicadas por Chipre e pela Grécia.
Instalar-se na Líbia, terceiro maior
exportador africano do ouro negro,
permitiria a Ancara, que importa
84,4% dos combustíveis fósseis de
que necessita, ter acesso às suas ri-
quezas em petróleo e gás natural.
No plano militar, o presidente
turco marcou um ponto significativo
ajudando as quatro grandes milícias
que apoiam o GAN a expulsar o ENL,
afrouxando o cerco que rodeava Trí-
poli desde abril de 2019. O fiasco das
tropas do marechal Haftar abriria as-
sim a perspectiva da reconquista da
cidade costeira de Sirta – onde nas-
ceu o coronel Muamar Kadafi –, per-
dida para o GAN em janeiro de 2020,
e da gigantesca base aérea de Al-Ju-
fra, no deserto. No entanto, isso não
quer dizer que os aliados de Erdogan
atinjam esses objetivos. Em 5 de ju-
lho, um bombardeio aéreo atingiu a
base de Al-Watiya, colocada à dispo-
sição da Turquia pelo GAN – uma
ação não reivindicada, inicialmente
atribuída ao Egito, cujos aviões de
caça podem operar da base aérea de
Sidi Barrani, perto da fronteira líbia,
depois à França, que não tinha hesi-
tado, em fevereiro de 2019, em bom-
bardear rebeldes toubous fugindo
diante do ENL do marechal Haftar.
Finalmente, a hipótese de uma inter-
venção dos Emirados Árabes ga-
nhou, pois estes dispõem de uma ba-
se em Al-Khadim, na Líbia, assim
como acesso à base de Sidi Barrani,
no Egito. Em todos os casos, essa ini-


ciativa só pode acontecer com a con-
cordância tácita da Rússia. Foi por is-
so que Ancara se contentou em
protestar e proferir ameaças sem
consequência.
A Turquia deve, com efeito, contar
com a Rússia, a outra protagonista
determinante do conf lito. Não tendo
tomado partido na expedição devas-
tadora de 2011, Moscou pretende fa-
zer da Líbia um novo ponto de amar-
ração que lhe permite estender sua
inf luência para o Magreb e para a
África subsaariana e confortar a in-
f luência adquirida no Oriente Médio
a favor da crise síria. Os mercenários
russos e outros combatentes sírios
pró-Assad colocados à disposição
por Moscou são a arma principal de
Haftar. Quando, por uma razão ou
por outra, eles se ausentam do front,
o marechal se encontra em grande
dificuldade, como em sua derrota às
portas de Trípoli.

MOSCOU ACOMODA
“CONFLITOS CONGELADOS”
No “arquivo líbio”, os russos agem
com pragmatismo e cinismo. Eles
ajudam seu vassalo, mas, dosando
sua intervenção, fazem que ele não
possa ganhar completamente. Por
exemplo, aviões de caça Mig-29 e Su-
khoi-24 pousaram em julho nas pis-
tas de Al-Jufrah, a 800 quilômetros de
distância de Trípoli. Essa base está
sob o controle das tropas do mare-
chal Haftar, e a chegada de caças rus-
sos é uma advertência à Turquia e ao
governo de Trípoli. Estes gostariam
de possuí-la para avançar em direção
do Fezzan, cujo subsolo é rico em pe-
tróleo, gás natural e ouro e esconde
importantes lençóis freáticos. No en-
tanto, a aviação russa não interveio
para impedir a derrota das tropas do
ENL em junho, diante de Trípoli.
Como na Síria,^7 os russos com-
põem com a Turquia, que apoia o
campo adversário, mas, ao mesmo

tempo, constitui um parceiro econô-
mico e um aliado de fato. Isso cria
problemas para a Otan e para a União
Europeia e explica por que esse anta-
gonismo não se traduz nunca em um
enfrentamento brutal. Uma espécie
de aliança contraditória liga Putin a
Erdogan. Nos terrenos sírio e líbio,
seus interesses nem sempre coinci-
dem, mas eles dão a impressão de sa-
ber até onde um e outro podem ir sem
ultrapassar um conf lito tolerável.
A Rússia se acomoda perfeita-
mente com os “conf litos congelados”.
Ela já deu demonstrações disso na
Ucrânia, na Geórgia e na Moldávia.
Esse dispositivo pouco custoso lhe
concede uma inf luência desestabili-
zadora e, para esses três países, blo-
queia qualquer perspectiva de ade-
são à União Europeia e à Otan. Para
Moscou ter mais um desses conf litos
com a Líbia, durante o tempo neces-
sário para conquistar um certo nú-
mero de bases militares – como foi o
caso na Síria –, é uma perspectiva
realista. A continuidade de uma
guerra latente, sem vencedor nem
vencido, a despeito das declarações
conciliadoras de Serguei Lavrov, mi-
nistro das Relações Exteriores russo,
é a opção escolhida pelo Kremlin.
Desde então, na Líbia se esboça
uma situação “síria”, com uma divi-
são do país em zonas de inf luência,
uma espécie de condomínio turco-
-russo determinado a proceder à par-
tilha dos despojos – sem dúvida de
maneira desigual. E não foram os pe-
didos recentes da França, da Itália e
da Alemanha de “cessar imediata-
mente e sem condição os combates e
suspender o reforço em curso dos
meios militares no país”^8 que vão mo-
dificar a situação em um contexto em
que o presidente norte-americano,
Donald Trump, manifesta pouco inte-
resse pelo caso. Já as declarações do
presidente egípcio, Abdel Fattah al-
-Sissi, que propôs em 6 de junho uma

trégua prevendo a partida dos “mer-
cenários estrangeiros” e o desmante-
lamento das milícias, e depois, em 20
de junho, ameaçou intervir com tro-
pas de solo, não modificam a situa-
ção. A incapacidade de seu Exército de
encerrar a revolta no Sinai torna essas
ameaças pouco críveis. Inclusive, o
Parlamento egípcio só autorizou em
julho um grupo militar transfrontei-
riço no “front ocidental” – uma refe-
rência à Líbia – para se opor às “milí-
cias armadas criminosas e aos
elementos terroristas estrangeiros”.
Qualquer que seja a evolução da
relação de forças entre turcos e rus-
sos, o futuro da Líbia vai ser decidido
fora dos agentes nacionais do conf li-
to, reduzidos aos papéis de figuran-
tes: na Conferência de Berlim, nem
Fayez al-Sarraj nem Khalifa Haftar fo-
ram convidados. A opinião do povo
líbio, contudo, jamais foi solicitada.

*Jean-Michel Morel é escritor e membro
do comitê de redação do Orient XXI. Último
romance publicado: Retour à Kobané,
A-Eurysthée, Jongny (Suíça), 2018.

1 Ler Patrick Haimzadeh, “La Libye aux mains
des milices” [A Líbia na mão das milícias], Le
Monde Diplomatique, out. 2012.
2 Cf. Ariane Bonzon, “Le désastreux casting de
la France en Libye” [O desastroso casting da
França na Líbia], Slate, Paris, 25 jun. 2020.
Disponível em: http://www.slate.fr.
3 Cf. “L’embarras de Paris après la découverte
de missiles sur une base d’Haftar en Libye” [O
embaraço de Paris após a descoberta de mís-
seis em uma base de Haftar na Líbia], Le Mon-
de, 10 jul. 2019.
4 “UN chief expresses shock at discovery of
mass graves in Libya” [Líder da ONU expres-
sa choque com a descoberta de valas co-
muns na Líbia], The Guardian, 13 jun. 2020.
5 Ler Jean Marcou, “La quête obsessionnelle d’un
pouvoir fort” [A busca obsessiva por um poder
forte], Le Monde Diplomatique, abr. 2017.
6 Ler Mireille Court e Chris Den Hond, “L’avenir
suspendu du Rojava” [O futuro suspenso do
Rojava], Le Monde Diplomatique, fev. 2020.
7 Ler Akram Belkaïd, “Ancara et Moscou, jeu
de dupes en Syrie” [Ancara e Moscou, um
jogo perdido na Síria], Le Monde Diplomati-
que, nov. 2019.
8 Comunicado comum de 25 de junho.

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Facticidade e validade
Jürgen Habermas propõe
novos desafios para a
democracia ao defender
que “não é possível haver
e nem preservar Estado
de direito sem
democracia radical”.

A ideia de uma
ciência social
e sua relação
com a losoa
Nesta obra de
referência, o inglês Peter
Winch evidencia as
relações entre as
ciências sociais com a
filosofia, por um lado, e
com as ciências naturais,
por outro.

A Aliança para
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João Goulart
Felipe Pereira Loureiro
apresenta um inédito e
acurado mapeamento
do auxílio econômico
dos Estados Unidos a
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brasileiros para
desestabilizar a
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