Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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26 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


HÁ CINQUENTA ANOS, AS AUTORIDADES DA JORDÂNIA REPRIMIAM A UTOPIA REVOLUCIONÁRIA PALESTINA


Após a derrota para Israel em 1967, o mundo árabe viveu importantes transformações políticas. As diferentes


facções palestinas aproveitaram-se dessas mudanças para fortalecer a luta armada contra o Estado hebreu.


A Jordânia tornou-se a retaguarda desse movimento e os combatentes vislumbraram até a possibilidade


de derrubar a monarquia. Com forte apoio ocidental, o rei Hussein enterrou a ameaça em sangue


POR ALAIN GRESH*


Memória de um Setembro Negro


A


mã, setembro de 1970. “Revolu-
ção até a vitória!”, “Todo o po-
der para a Resistência!”, “A es-
trada para Jerusalém passa por
Amã!”. Esses slogans, pintados nas
paredes da capital da Jordânia, estão
ao lado de cartazes do “guerrilheiro
heroico” Che Guevara, assassinado
em 9 de outubro de 1967 na Bolívia
por ordem da CIA. Militantes arma-
dos, com a cabeça coberta por um
kufiyyah, fiscalizam os principais
cruzamentos, enquanto pick-ups
com metralhadoras apontadas para o
céu circulam pelos labirintos da cida-
de. O congresso da União Geral de
Estudantes Palestinos (Gups) dá
boas-vindas a centenas de ativistas
de esquerda estrangeiros, alguns de-
les judeus, que entraram na Jordânia
mais ou menos ilegalmente. Citam
Fidel Castro e Mao Tsé-tung, devo-
ram Frantz Fanon e Ho Chi Minh, co-
mentam os escritos de Vo Nguyen
Giap sobre a Guerra Popular no Viet-
nã. No fim do verão, paira sobre a ci-
dade das sete colinas um perfume
que, para alguns, lembra o de Petro-
grado em 1917 e o slogan “Todo poder
aos sovietes!”. Para o líder de uma das
organizações palestinas de esquerda,
Nayef Hawatmeh, vive-se na Jordânia
uma situação de “duplo poder” e o rei
Hussein deve se afastar diante da re-
sistência palestina, como o governo
de Alexander Kerensky foi apagado
pelos bolcheviques.
Em Amã, assim como em Havana,
Argel ou Hanói, o Terceiro Mundo se
insurge e sonha com uma realidade
alicerçada em outras bases. Os jovens
estudantes e trabalhadores do Oci-
dente, em revolta desde a primavera
de 1968, reconhecem-se nessa uto-
pia. O diretor Jean-Luc Godard filma
in loco “a guerra prolongada até a vi-
tória do povo palestino”, enquanto o
escritor Jean Genet canta seu amor
pelos combatentes palestinos: “Da
Ásia à América, a atmosfera é de revo-
lução! Quero apenas grandiosidades,
como um buquê de fogos de artifício,
incêndios que saltam de banco em
banco, de ópera em ópera, da prisão
a o t r i b u n a l ”.^1 A escritora Ania Fran-
cos, cujos avós foram mortos nos
campos de Hitler, proclama: “Vale a


pena morrer em terra estrangeira e,
da mesma forma que me senti argeli-
na quando os Aurès foram tomados,
hoje me sinto palestina”.^2
Esse tornado atingiu um mundo
árabe traumatizado pela derrota pa-
ra Israel, em junho de 1967. Uma
marretada que desencadeou uma si-
lenciosa raiva popular contra os po-
deres locais. O Egito de Gamal Abdel
Nasser e seu aliado baathista sírio –
líderes do nacionalismo árabe anti-
-imperialista revolucionário – per-
dem parte de sua aura. Nasser e seu
regime são contestados não pelos
movimentos islâmicos enfraqueci-
dos pela repressão das décadas de
1950 e 1960, mas pela extrema es-
querda, que orquestra protestos de
estudantes e trabalhadores contra a
clemência demonstrada pelos tribu-
nais egípcios para com os responsá-
veis pela derrota, contra “a nova clas-
se” e todos os aproveitadores, ao
mesmo tempo que reclama o apro-
fundamento da opção socialista. No
Iraque e na Líbia, golpes de Estado
levam a mudanças de regime.

DESVIO ISRAELENSE
É nessa brecha imprevista que irrom-
pem as organizações de fedayin. Elas
aproveitam o enfraquecimento da
monarquia para se estabelecer em
território jordaniano, onde metade
da população é palestina, e oferecem
a luta armada como instrumento de
vingança contra Israel e seu aliado
norte-americano. Elas fazem parte
da dinâmica da Conferência Tricon-
tinental, realizada em janeiro de 1966
em Havana, com o objetivo de unir os
povos da África, Ásia e América Lati-
na contra o “imperialismo ianque”.^3
Quais são essas organizações?^4 A
principal, liderada por um homem
ainda pouco conhecido, Yasser Ara-
fat, é o Fatah, que lançou suas pri-
meiras ações armadas contra Israel
em 1º de janeiro de 1965, defendendo
a libertação de toda a Palestina pelos
próprios palestinos. A Frente Popular
para a Libertação da Palestina (FPLP)
e sua divisão de esquerda, a Frente
Democrática e Popular para a Liber-
tação da Palestina (FDPLP), surgiram
do Movimento dos Nacionalistas

Árabes, criado em Beirute depois de
1948 por George Habache, um cristão
palestino. Por muito tempo, ele de-
fendeu a unidade árabe como condi-
ção para a libertação da Palestina, re-
conhecendo-se no discurso de
Nasser, antes de se converter ao mar-
xismo-leninismo e criticar tanto o lí-
der egípcio quanto o Fatah, por ser
“pequeno-burguês”, mesmo que uma
ala deste último se autoproclamasse
maoista. A esse cenário, soma-se uma
miríade de pequenos grupos, muitas
vezes financiados por capitais ára-
bes, como o Saika, subserviente a Da-
masco, e a Frente de Libertação Ára-
be, vassala de Bagdá.
A Organização para a Libertação
da Palestina (OLP), criada pela Liga
Árabe em 1964, está desacreditada e
estagnada por seu caráter burocráti-
co. Em fevereiro de 1969, ela passou
ao controle do Fatah e de Arafat, que
se tornou presidente de seu comitê
executivo, reunindo as várias organi-
zações fedayin, mas permaneceu co-
mo uma estrutura unitária frágil, com
cada organização desempenhando
seu papel. Para além de suas diferen-
ças, essas organizações rejeitam a
ideia de um simples retorno à situa-
ção de antes de 5 de junho de 1967 –
conforme preconizado na Resolução
n. 242 do Conselho de Segurança da
ONU de 22 de novembro de 1967, cuja
filosofia pode se resumir em troca de
territórios ocupados pela paz – e ad-
vogam pela “libertação de toda a Pa-
lestina” por um único instrumento: a
luta armada. Essa perspectiva revolu-
cionária coloca essas organizações
em oposição a regimes árabes como o
da Jordânia ou mesmo de Nasser –
que, no entanto, apoia essas organi-
zações. A intensificação das ações de
guerrilha na Cisjordânia ocupada pa-
recem confirmar a estratégia da Re-
sistência: de 97 em 1967, passam para
916 em 1968, 2.432 em 1969 e 1.887 até
setembro de 1970 (quando então
caem para 45 em 1971).^5
A Batalha de Karameh, em 20 de
março de 1968, marca o auge do po-
der dos fedayin. Os combatentes do
Fatah resistem por um dia inteiro a
uma incursão blindada israelense na
Jordânia, com o objetivo de destruir

uma de suas bases. Os israelenses
perdem dezenas de soldados e mui-
tos tanques. As autoridades israelen-
ses tentam minimizar a dimensão da
derrota, que o jornal Haaretz qualifi-
cou em 29 de março de 1968 como
“uma das páginas mais sombrias da
história militar de Israel”. Contudo,
os números pesam menos do que seu
caráter simbólico: pela primeira vez,
os guerrilheiros árabes tinham en-
frentado o Exército israelense. Milha-
res de voluntários, homens e mulhe-
res, sem distinção, em geral muito
jovens, vindos dos campos palesti-
nos, do mundo árabe, às vezes do
Ocidente, alistam-se nas fileiras da
Resistência, cuja popularidade está
no auge. Uma vertigem de sucesso
acomete as organizações palestinas,
e o Fatah promete criar “zonas libera-
das” na Cisjordânia.
No entanto, o Oriente Médio não é
o Sudeste Asiático, a Palestina não é o
Vietnã do Sul, a Jordânia não é o Viet-
nã do Norte e não corre o risco de vir
a ser. O rei Hussein mantém canais
de comunicação com os líderes is-
raelenses, é um sólido aliado dos Es-
tados Unidos – e até membro da CIA^6


  • e não tem intenção de permitir que
    um poder rival tome conta. Já os pa-
    lestinos não têm aliados estratégicos,
    nem mesmo no Egito, principal país
    do “campo de batalha”.
    Em junho de 1970, um plano de
    negociações baseado na Resolução n.
    242 do Conselho de Segurança é pro-
    posto pelos Estados Unidos. É aceito
    pela Jordânia, Egito e, após uma pri-
    meira recusa, por Israel. As organiza-
    ções fedayin não querem endossar
    um projeto que ignore os direitos dos
    palestinos, exceto como “refugia-
    dos”. A mídia palestina não hesita em
    culpar o próprio Nasser. Para evitar a
    ruptura, uma delegação liderada por
    Arafat encontra-se com o presidente
    egípcio, em Alexandria. Este último
    explica a eles, em essência, que não
    acredita no plano Rogers (em home-
    nagem ao então secretário de Estado
    dos Estados Unidos) – que Israel de-
    nunciará algumas semanas depois –,
    mas que precisa ganhar tempo para
    reconstruir seu Exército. Ele garante
    que não os abandonará diante do rei


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