Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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28 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


UMA PATOLOGIA GRAVE QUE ACOMETE SOBRETUDO JOVENS MULHERES DE MEIOS MAIS ABASTADOS


A anorexia, uma


doença social


As desigualdades sociais em relação à saúde se estabelecem em geral em
detrimento dos homens pobres. A anorexia constitui uma das raras exceções: esse
gravíssimo problema atinge mais garotas de meios abastados. Expostas a normas
de magreza mais estritas, elas são também mais propensas a achar que
podem controlar seu destino social e, portanto, seu peso

POR CLAIRE SCODELLARO*

R


aramente uma doença escolhe
vítimas de modo tão pouco
aleatório: entre 90% e 95% das
pessoas que sofrem de ano-
rexia mental – distúrbio do compor-
tamento alimentar que se manifesta
por uma privação estrita e voluntária
da alimentação por um período de
vários meses, ou até vários anos – são
mulheres. Tal desequilíbrio entre os
dois sexos só se registra no câncer de
mama (1% dos pacientes são homens)
ou... nas afecções dos órgãos genitais.
Outra singularidade: a composição
social da população envolvida. En-
quanto a distribuição dos riscos em
matéria de saúde se estabelece em
geral em detrimento dos meios popu-
lares, observamos o inverso no caso
da anorexia. Desse modo, as meninas
das classes superiores (cujos pais
ocupam cargos de chefia, exercem
uma profissão liberal ou são donos de
empresas) têm 1,6 vez mais probabi-
lidade de serem afetadas que as filhas
de operários; as meninas de classe
média (profissões ditas intermediá-

rias, empregados com carteira) têm
1,3 vez mais chances.^1 Por fim, o per-
fil por idade difere de outros trans-
tornos mentais: a anorexia raramen-
te se inicia após os 25 anos, e a
probabilidade de surgir novamente
diminui com o avanço da idade, ao
passo que a depressão permanece
frequente na idade adulta.
Apresentada em 2010 pela Alta
Autoridade de Saúde da França co-
mo “um risco de saúde pública im-
portante, porém pouco levado em
conta em nosso país” – culpa dos
meios dedicados à sua prevenção –, a
anorexia mental estaria em plena
progressão. Em vigor desde 2017,
uma lei teve a ambição de atacar as
causas sociais dessa calamidade
que, segundo o último estudo dispo-
nível, publicado em 2008, atingia
quase 5% das jovens francesas de 17
anos (ler o boxe). A proposta mira

principalmente a moda e a publici-
dade, e visa, entre outros objetivos,
proteger a saúde das modelos. Mas
combater os setores que propagam
representações dos corpos femini-
nos patogênicos faria a anorexia re-
cuar? Sem dúvida não tanto quanto
o esperado. As causas sociais dessa
doença se situam aquém do alcance
das páginas de revistas: enquanto a
população em seu total está exposta
às mesmas imagens de corpos ma-
gros, a probabilidade de adoecer va-
ria de modo considerável de um in-
divíduo a outro, de acordo, em
especial, com seu meio social.
Os fatores na origem da anorexia
são múltiplos e interagem com o per-

curso individual: disfunções do sis-
tema nervoso, configurações fami-
liares e psicológicas, eventos
estressantes. O retrato sociodemo-
gráfico que podemos traçar dela, re-
velador de uma verdadeira doença de
classe, não se mostra menos sur-
preendente. Sobre tal ponto, rara-
mente comentado pelos profissio-
nais de saúde, a Sociologia e a
História da Medicina trazem um es-
clarecimento útil.

PESQUISA DE EXCELÊNCIA
Nos tratados de medicina, o diagnós-
tico de “anorexia mental” apareceu e
se tornou preciso durante a segunda
metade do século XIX. As restrições
alimentares duradouras (que podem
ir até o jejum total e não se explicam
por problemas de digestão) consti-
tuíam antes o principal sintoma. O
médico francês Ernest-Charles Lasè-
gue^2 e seu colega britânico William
Gull^3 notaram que a inanição se
acompanha paradoxalmente de uma
energia transbordante. “Longe de
acabar com as forças musculares, a
diminuição da ingestão de alimentos
tende a aumentar a aptidão para o
movimento”, observa Lasègue. “A
doente continua a se sentir mais ati-
va, mais leve, ela monta a cavalo, rea-

© Mag Magrela

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