Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29


liza longas caminhadas a pé, recebe e
faz visitas, e leva, se necessário, uma
vida mundana exaustiva, sem de-
monstrar o cansaço de que ela recla-
maria outrora.” As primeiras descri-
ções clínicas de Lasègue também
evidenciam a predominância de ga-
rotas entre as pessoas atingidas, e as
ocupações de suas pacientes evocam
os passatempos da burguesia, à qual
pertenciam sem dúvida. Alguns anos
depois, o neurologista Jean-Martin
Charcot (1883) e outros médicos eu-
ropeus começaram a mencionar sin-
tomas que se tornariam centrais no
diagnóstico da anorexia mental: o
medo de ganhar peso e a convicção
de estar muito gorda.^4
Deve-se concluir que essa doença
nasceu no fim do século XIX? Ou só
se trata de um rótulo médico aplica-
do a práticas mais antigas? Não há
dúvidas de que as práticas de jejum
prolongado não datam de ontem. A
freira dominicana Catarina de Siena
(1347-1380), canonizada no século
XV, se privava de alimentar-se até o
esgotamento. Tais restrições alimen-
tares, porém, se inscreviam em uma
empreitada mística, o que não era
mais o caso no fim do século XIX. O
jejum passou então a ser motivado
por uma busca de distinção social: a
silhueta da mulher burguesa devia
ser magra, transformando a corpu-
lência em um atributo das classes po-
pulares, à medida que a fome recua-
va.^5 A psiquiatria, nessa época em
plena ascensão, forjou um novo vo-
cabulário médico com base nos ca-
sos mais extremos. Embora seja ver-
dade que as práticas de privação de
alimentação já existissem antes do
aparecimento do diagnóstico de
anorexia mental, o nascimento e o
destino dessa doença permanecem
indissociáveis da afirmação da cul-
tura burguesa.
Um século e meio depois, a valori-
zação da magreza na sociedade fran-
cesa guarda o traço desse desenvolvi-
mento histórico.^6 Segundo um estudo
francês de 2008 englobando quase 40
mil adolescentes de 17 anos, as jovens
aspiram a uma corpulência menor
que os limites médicos da magreza:^7
uma menina que mede 1,70 metro
julga seu peso bom quando está em
torno de 52 quilos, ao passo que ela
seria considerada normal se pesasse
entre 1 e 20 quilos a mais. O peso
ideal se situa em um nível ainda mais
baixo entre as jovens de classes supe-
riores, aumentando a diferença com
as das classes populares.
O contraste com os meninos é du-
plo: não apenas eles julgam adequa-
das as corpulências mais elevadas
(seu peso ideal médio para 1,70 me-
tro é de 62 quilos, ou seja, 10 quilos a
mais que para as meninas), mas sua
origem social quase não faz variar


essa apreciação. De outro modo, as
representações do corpo perfeito dis-
tinguem socialmente as meninas,
mas não os meninos. É também o ca-
so das corpulências reais, que va-
riam pouco entre os meninos segun-
do sua origem social, mas muito
entre as meninas. Tais disparidades
ilustram quanto, para as meninas, a
magreza tem um valor social, que as
situa em uma dupla hierarquia. Para
esquematizar, ela aparece ao mesmo
tempo como um sinal de inferiorida-
de das mulheres perante os homens e
de superioridade das mulheres abas-
tadas sobre aquelas oriundas de
meios populares.
As adolescentes se preocupam em
particular em exibir um corpo (mui-
to) magro, em uma idade na qual não
podem se aproveitar do prestígio so-
cial de propriedades que classificam
habitualmente os adultos (rendas,
profissões etc.). Isso poderia explicar
o surgimento muito frequente da
anorexia em uma idade jovem e o fato
de que seja sempre associada a outros
comportamentos. Como mostram os
trabalhos da socióloga Muriel Dar-
mon, magreza e desempenho escolar
fazem parte de uma mesma busca
por excelência social, da qual as me-
ninas participam mais que os meni-
nos, em especial nas classes superio-
res.^8 Não é, por conseguinte, muito
surpreendente que as turmas prepa-
ratórias das grandes escolas contem
com frequência com alunas sofrendo
de anorexia.
Marca de sucesso social, a ma-
greza raramente é percebida como
um presente da genética, mas como
um bem que se adquire controlando
a alimentação e, de maneira mais
específica, os impulsos de fome. Por
extensão, a magreza simboliza o
controle de si. Isso é descrito como
típico das práticas anoréxicas, e em
primeiro lugar pelas pessoas atingi-
das. “Ela se sentia cada vez mais,
mais leve, mais pura também”, es-
creve a romancista Delphine de Vi-
gan em Jours sans faim [Dias sem fo-
me], relato autobiográfico em
terceira pessoa. “Ela se tornava mais
forte que a fome, mais forte que a
necessidade. Quanto mais emagre-
cia, mais buscava essa sensação pa-
r a dom i n á-l a .”^9

EXIGÊNCIAS TIRÂNICAS
O que se apresenta como uma vonta-
de patológica de controle próprio a
um indivíduo poderia na verdade se
enraizar em uma relação com o mun-
do socialmente moldado. Ensina-se
de fato às jovens a “se portar bem”, a
“se cuidar”, a “não se deixar levar”, ao
passo que aos homens recairia o pri-
vilégio de controlar os outros. Tantos
imperativos que observamos em par-
ticular no seio das classes médias e

superiores, mais propensas que as
classes populares a acreditar na pos-
sibilidade de controlar seu destino
social. Essa injunção ao controle po-
deria causar predisposição aos dis-
túrbios de comportamento alimen-
tar, constituindo um reservatório de
práticas às quais se poderia recorrer
para enfrentar situações de estresse
ou de eventos dolorosos – como o
consumo de álcool ou de outros pro-
dutos psicoativos.
Ao longo da vida, as mulheres ex-
perimentam injunções dificilmente
conciliáveis: ter “formas femininas”,
mas sem celulite; ser vigilante quan-
to à aparência, mas sem ser “superfi-
cial”; controlar a fome enquanto pre-
para a refeição da família; ter
liberdade para seu corpo, mas pre-
servá-lo da gordura; amamentar o
quanto for necessário, mas continuar
trabalhando etc. Tais exigências tirâ-
nicas, que variam segundo a idade e
o meio social, constituem o pano de
fundo diante do qual prospera a ano-
rexia mental. À medida que a doença
ganha terreno, o controle se torna pa-
radoxalmente incontrolável. O senti-
mento de domínio com o qual se ale-
gram as jovens ao verem baixar o
ponteiro da balança torna-se tão in-
dispensável que não conseguem
mais atingir um peso normal. Veem
então seu risco de morte prematura
aumentar muito mais que o do resto
da população, em razão de suicídios
ou de complicações decorrentes de
episódios de jejum severo. E as nor-

mas sociais se tornam, assim, um
problema de saúde pública.

*Claire Scodellaro é professora de de-
mografia da Universidade Paris 1 Pan-
théon-Sorbonne e pesquisadora associada
ao Instituto Nacional de Estudos Demográ-
ficos da França.

1 Enquête sur la santé et les consommations lors
de l’appel de préparation à la défense (Esca-
pad) [Investigação sobre a saúde e o consumo
durante o preparatório para o exame de admis-
são das Forças Armadas], Observatório Fran-
cês de Drogas e Toxicomanias, Paris, 2008;
Claire Scodellaro, Jean-Louis Pan Ké Shon e
Stéphane Legleye, Troubles dans les rapports
sociaux: le cas de l’anorexie et de la boulimie
[Distúrbios nas relações sociais: o caso da
anorexia e da bulimia], Revue française de so-
ciologie, v.58, n.1, Paris, jan.-mar. 2017.
2 Cf. Ernest-Charles Lasègue, De l’anorexie
hystérique [Da anorexia histérica], Archives
générales de médecine, série VI, tomo 21,
v.1, Paris, 1873.
3 Cf. William Gull, Anorexia nervosa (apepsia hys-
terica, anorexia hysterica) [Anorexia nervosa
(apepsia histérica, anorexia histérica)], Transac-
tions of the Clinical Society of London, 7, 1874.
4 Tilmann Habermas, History of anorexia nervo-
sa [História da anorexia nervosa]. In: Linda
Smolak e Michael P. Levine (orgs.), The Wiley
Handbook of Eating Disorders [O livro Wiley
de distúrbios alimentares], John Wiley &
Sons, Hoboken (Nova Jersey), 2015.
5 Georges Vigarello, Les Métamorphoses du
gras. Histoire de l’obésité [A metamorfose
da gordura. História da obesidade], Seuil,
Paris, 2010.
6 Claire Scodellaro, Jean-Louis Pan Ké Shon e
Stéphane Legleye, op. cit.
7 Escapad, op.cit.
8 Murielle Darmon, Des jeunesses singulières.
Sociologie de l’ascétisme juvénile [Juventudes
singulares. Sociologia do ascetismo juvenil],
Agora débats/jeunesses, n.56, Paris, 2010.
9 Delphine de Vigan (sob o pseudônimo de Lou
Delvig), Jours sans faim [Dias sem fome],
Grasset, Paris, 2001.t.

DOIS POR CENTO DAS MULHERES AFETADAS


Como os médicos traçam uma fron-
teira entre comportamentos normais
e patológicos em matéria de magre-
za? Os manuais de medicina, tal co-
mo o Manual Diagnóstico e Estatísti-
co de Distúrbios Mentais (DSM), da
Associação Norte-Americana de Psi-
quiatria, acrescentam às manifesta-
ções subjetivas da anorexia mental
um critério de peso. Desse modo,
uma mulher adulta medindo 1,64 me-
tro e pesando 49 quilos é considera-
da abaixo do peso, pois seu índice de
massa corpórea (IMC), que relaciona
o peso à altura ao quadrado, é inferior
a 18,5 kg/m^2. Se essa mulher se per-
cebe, no entanto, como muito gorda,
é possível que apresente uma ano-
rexia mental dita subsindrômica. A
anorexia será sem dúvida caracteri-
zada se ela perder 4 quilos (chegan-
do a um IMC inferior a 17 kg/m^2 ) e se
recusar a recuperar o peso.
Na Europa e na América do Norte,
quase 2% das mulheres são afetadas

ao longo da vida, em comparação a
menos de 0,1% dos homens. Na
França, em 2008, 1,4% das meninas
de 17 anos já havia apresentado os
sintomas de uma anorexia caracteri-
zada, e 3,3% , os sintomas menos
graves de uma anorexia dita subsin-
drômica. As frequências foram res-
pectivamente 0% e 0,1% entre os ra-
pazes da mesma idade.^1 Nenhum
estudo pôde concluir de maneira for-
mal quanto a uma multiplicação de
casos no curso dos últimos vinte
anos.^2 [C. S.]

1 Nathalie Godart et al., “Epidemiology
of anorexia nervosa in French commu-
nity-based sample of 39,542 adoles-
cents” [Epidemiologia da anorexia
nervosa baseada na amostragem da
comunidade francesa de 39.542 ado-
lescentes], Open Journal of Epide-
miology, Wuhan (China), jan. 2013.

2 Hélène Roux et al., “Épidémiologie
de l’anorexie mentale: revue de la lit-
térature” [Epidemiologia da anorexia
mental: revisão da literatura], L’ E n c é-
phale, v.39, n.2, Paris, abr. 2013.

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