Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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30 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


MÉDICOS E ENFERMEIROS DENUNCIAM “A DITADURA DA ECONOMIA”


Na Alemanha,


hospitais bem rentáveis


Durante o pico epidêmico do coronavírus, o sistema de saúde alemão serviu de modelo graças a seus leitos


de UTI mais bem equipados. Porém, por lá, os cuidadores e os hospitais denunciam há alguns anos uma falta


estrutural de recursos e de pessoal. Por causa, entre outros fatores, de um sistema de financiamento bastante


similar à tarifação por atividade, existente na França


POR RACHEL KNAEBEL*, ENVIADA ESPECIAL


A


xel Hopfmann foi enfermeiro
em um hospital por muito tem-
po. Em 2004, o estabelecimento
em que trabalhava, em Ham-
burgo, foi privatizado. Ele preferiu en-
tão continuar na administração pú-
blica a se tornar empregado de um
grande grupo voltado para o lucro.
“Trabalho hoje em um escritório”, es-
pecifica. Constanze Weichert, enfer-
meira há dez anos, deixou outro hos-
pital hamburguês para exercer sua
profissão em um ambulatório para
pessoas idosas. “Hospital nunca
mais”, assegura ela. “Eu adoraria vol-
tar para lá, mas só se as condições de
trabalho mudassem.” Para Steffen
Hagemann, a experiência hospitalar
foi tão difícil que ele não ficou mais de
sete anos na profissão de enfermeiro.
“É pela imagem do ofício que é preciso
se sacrificar; os diretores jogam com
isso para calar as reivindicações”, la-
menta. Cada vez mais, os profissio-
nais da saúde alemães denunciam as
condições de trabalho “maciçamente
degradadas”, como testemunha Anja
Voigt, enfermeira de UTI em Berlim.
“Eu me lembro da época em que po-
díamos tirar folga e eu tinha tempo
para os pacientes. Hoje, eu tiro uma
folga por mês, às vezes.”
Longe da imagem idílica transmi-
tida durante a crise do coronavírus
pela mídia francesa, o sistema hospi-
talar alemão também sofre de falta de
recursos e de pessoal. Sejam os sindi-
catos dos enfermeiros ou dos médi-
cos, todos lamentam a falta gritante
de profissionais da saúde nos hospi-
tais. Um estudo da fundação Hans-
-Böckler estima em 100 mil o número
de vagas de enfermeiros em regime
integral que deveriam ser criadas.^1
Tendo em vista a dureza da atividade,
os cargos de enfermeiros oferecidos
nem encontram mais ocupantes. É
certo que a Alemanha contabiliza
muito mais leitos de UTI que seus vi-
zinhos europeus: 34 para cada 100
mil habitantes, contra 16,3 na França
e 8,6 na Itália.^2 “Mas, se houvesse tan-
tos doentes graves de Covid-19 como


no norte da Itália, teríamos tido os lei-
tos, de fato, mas não o pessoal para
cuidar dos pacientes”, ironiza Nadja
Rakowitz, diretora da Associação de
Médicos Democratas (Verein de-
mokratischer Ärztinnen und Ärzte,
VdÄ Ä). Alguns meses antes da epide-
mia, a Alemanha discutia até a perti-
nência de manter tantos lugares de
hospitalização: um estudo da Funda-
ção Bertelsmann preconizava fechar
mais da metade dos hospitais do
país.^3 “Em seguida chegou o corona-
vírus, e todo mundo viu que era bom,
na verdade, ter muitos hospitais e lei-
tos...”, destaca ainda Nadja Rakowitz.

ACENTUAR A CONCORRÊNCIA
Para compreender tais paradoxos,
deve-se voltar às decisões políticas
tomadas na Alemanha sobre hospi-
tais no curso das últimas décadas.

Em 1985, uma lei abriu amplamente o
mercado de cuidados hospitalares às
empresas privadas com fins lucrati-
vos. A partir daí, criaram-se e fortale-
ceram-se os grandes grupos alemães
de clínicas: Sana, Asklepios, Röhn e
Helios (comprado pela multinacional
de materiais médicos Frenesius). Não
existe diferença de tratamento finan-
ceiro entre os estabelecimentos pú-
blicos, privados sem fins lucrativos e
privados com fins lucrativos. Todos
estão inscritos nos planos regionais
de oferta de saúde; a distinção não foi
feita nem mesmo na terminologia
utilizada. Depois, em 2004, no mes-
mo momento em que a França esta-
beleceu a Tarifação por Atividade (ta-
rification à l’activité, T2A), a Alemanha
adotou um sistema similar, o da “taxa
fixa por caso”. Não eram mais os cui-
dados efetivos que eram financiados,

e sim as taxas fixas segundo um catá-
logo de patologias, qualquer que fosse
o número de dias de hospitalização
necessário. Como na França, os pro-
cedimentos técnicos – por exemplo,
as operações de prótese de quadril, de
joelho, as cirurgias em geral – são re-
munerados de maneira bem melhor
que um parto normal ou a pediatria.
A T2A francesa e a “taxa fixa por caso”
alemã têm no fim a mesma origem: o
sistema de “grupos relacionados aos
diagnósticos” (ou DRG, diagnosis re-
lated groups) importado dos Estados
Unidos, onde foi introduzido no co-
meço dos anos 1980.^4
“O objetivo do novo sistema de
fundos era claramente visar a mais
rentabilidade – nada havendo a se ob-
jetar em relação a isso. Mas tratava-se
também de acentuar a concorrência
entre os estabelecimentos e chegar a

© Unsplash

O sistema hospitalar alemão sofre de falta de recursos, diferente da imagem transmitida na crise do coronavírus

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