Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31


uma queda no número de hospitais”,
estima Uwe Lübking, da Associação
de Municípios da Alemanha. Com ex-
ceção dos Centros Hospitalares Uni-
versitários (CHU), que dependem
dos estados-região, os hospitais pú-
blicos na Alemanha são uma compe-
tência dos municípios e dos distritos
intermunicipais, os Landkreis.
Desse modo, são essas coletivida-
des que devem compensar os défi-
cits, que vendem às vezes seus hospi-
tais a grupos privados ou que veem
esses mesmos grupos fechá-los
quando não são mais tão lucrativos.
Mais de trezentos hospitais e clínicas
desapareceram na Alemanha desde
os anos 2000, e cerca de 50 mil leitos
de hospitalização foram suprimidos,
ao passo que o número de casos
acompanhados aumentou em vários
milhões. Ao mesmo tempo, o setor
privado com fins lucrativos expan-
diu sua participação: representava
15% do total de estabelecimentos em
1992, depois 37%, ou seja, mais de
um terço, em 2018.^5 Muitos hospitais
públicos foram de fato privatizados,
às vezes em condições contestadas.
Em 2004, por exemplo, a venda de se-
te estabelecimentos de Hamburgo ao
grupo Asklepios foi realizada contra
a vontade dos habitantes da cidade-
-estado: três quartos dos votantes se
opuseram à ação em um referendo
local. Uma vez privatizados, os esta-
belecimentos se concentram quase
sempre nas doenças mais lucrativas.
Custeados exatamente da mesma
maneira, os hospitais públicos en-
traram, por sua vez, em uma corrida
pela rentabilidade.
“Desse modo, postos em concor-
rência uns contra os outros, os estabe-
lecimentos olharam para o que era o
melhor em termos de remuneração
em um sistema de taxa fixa por caso –
por exemplo, a cardiologia, a ortope-
dia – e se equiparam em função disso.
Em minha opinião, é por essa razão
que temos tantos leitos de UTI”, expli-
ca Nadja Rakowitz. Outra especifici-
dade do sistema hospitalar alemão é
seu custeio dual. Os custos ditos de
funcionamento – portanto, de pessoal



  • são assumidos pelo seguro-saúde;
    os de investimentos – prédio, equipa-
    mentos... – devem normalmente ser
    abonados pelos estados-região (Län-
    der), tanto nos estabelecimentos pú-
    blicos como nos privados. Ou seja,
    “todos os estados-região, nesse con-
    texto da política de ‘freio à dívida pú-
    blica’ e tendo em vista sua situação
    orçamentária, alocam muito pouco
    dinheiro”, analisa Harald Weinberg,
    deputado do Partido Die Linke (A Es-
    querda) no Bundestag. Faltariam
    também aos hospitais quase 4 bilhões
    de euros por ano de recursos públi-
    cos, segundo os cálculos da Associa-
    ção Alemã de Hospitais (Deutsche


Krankenhausgesellschaft). “Por isso, o
orçamento destinado aos custos de
funcionamento é em parte utilizado
para financiar os investimentos, e as
economias recaem sobre a folha de
pagamento”, acrescenta o político.

Com a passagem a uma tarifação
por procedimento, no quadro de um
orçamento restrito, a gestão se tor-
nou comandante de bordo. Um novo
setor de cargos surgiu: os “gerentes
de DRG”, os controladores e outros
programadores encarregados de ze-
lar pelo correto registro dos procedi-
mentos, respeitando as mais de mil
categorias que contêm hoje o catálo-
go alemão de tarifação. “Codificar no
computador ocupa pelo menos 20%
do meu tempo de trabalho. Para os
médicos é ainda pior”, relata a enfer-
meira berlinense Anja Voigt. Cansa-
dos do domínio crescente da lógica
econômica, os funcionários dos hos-
pitais alemães rejeitam cada vez mais
esse sistema. No fim de 2019, a revista
Stern publicou um apelo de dezenas
de médicos e grupos de profissionais
pedindo para “salvar a medicina”.^6
“Os pacientes que têm dúvidas, medo
da dor ou da morte não são levados
em consideração em nossos hospi-
tais”, escrevem também eles.
No front dos paramédicos, as gre-
ves por melhores condições de traba-
lho se multiplicam desde 2015. O mo-
vimento começou no Hospital
Berlinense da Caridade. Desde en-
tão, acordos de “descarga” de traba-
lho foram obtidos em quase vinte
hospitais públicos pelo país. Estes úl-
timos preveem uma proporção de
pessoal necessária para o número de
pacientes, diferente para cada servi-
ço, e determinada com base na expe-
riência dos profissionais da saúde. Os
dias trabalhados com efetivo reduzi-
do dão aos enfermeiros o direito à re-
posição de descanso.
“O objetivo desses acordos é obri-
gar os diretores a contratar mais pes-
soal, e isso funciona”, assegura Mi-
chel Quetting, que conduziu as
negociações para a federação sindi-
cal Verdi. “As greves dos profissionais
da saúde recebem em geral um gran-
de apoio da opinião pública, ao con-
trário de movimentos de motoristas
de ônibus, por exemplo. Hoje, os tra-
balhadores do setor da saúde têm a
possibilidade de inf ligir uma derrota
ao neoliberalismo. Seria a primeira
vez, e isso se mostraria significativo

para todos os outros setores da eco-
nomia”, pensa o sindicalista.
Além do envolvimento de agentes
hospitalares, alianças de cidadãos
por “mais empregados nos hospitais”
se constituíram em uma dúzia de
municípios da Alemanha. Em quatro
cidades e regiões (Baviera, Bremen,
Berlim e Hamburgo), reuniram mi-
lhões de assinaturas necessárias pa-
ra exigir um referendo local de inicia-
tiva popular sobre o tema. Em toda
parte, as autoridades rejeitaram a de-
manda, sob a justificativa de que a
questão não seria de competência
dos estados federais. São, no entanto,
eles que definem os programas de
cuidados hospitalares.
Nos municípios, a privatização
começou a diminuir o ritmo. Nesses
últimos anos, alguns hospitais foram
até “remunicipalizados”. No começo
de junho, no distrito cantonal de Lu-
dwigslust-Parchim, em Meclembur-
go-Pomerânia Ocidental, a assem-
bleia do Landkreis decidiu, por
exemplo, pela recompra por meio da
coletividade de um pequeno hospital
de 74 leitos que havia sido privatizado
em 1997. A moção foi votada “por
unanimidade”, precisa o represen-
tante distrital Stefan Sternberg. Pou-
co antes do Natal passado, a empresa
que possuía o estabelecimento, uma
filial do grupo Asklepios, havia anun-
ciado sem consultas que queria fe-
char a maternidade. “Houve uma for-
te mobilização dos habitantes, e a
notícia provocou um debate sobre a
organização da oferta de serviços de
saúde nas regiões rurais, em particu-
lar nas zonas com baixa densidade
demográfica, como a nossa”, explica
o social-democrata de 37 anos. Para
ele, “a municipalização não é a pana-
ceia, mas, quando se trata de acesso à
saúde, creio que se deva tomar esse
caminho, com um parceiro privado
que entenda de gestão”. Seu projeto,
nesse caso, é preservar o controle de
51% do hospital e vender o restante
das cotas a um ator privado, manten-
do-se em ligação com outros estabe-
lecimentos hospitalares do território
já cogeridos pela coletividade. “Não
temos inf luência no sistema de tari-
fação”, explica, “mas, se gerirmos di-
versos estabelecimentos especializa-
dos em diferentes setores, podemos
realizar economias em escala.” Em
2016, em Hesse, um político de direi-
ta, Michael Koch, também iniciou a
“remunicipalização” de uma clínica
em seu cantão. Para o conservador,
“os hospitais alemães são subfinan-
ciados. Seus custos de manutenção e
os gastos para dispor da oferta de cui-
dados em caso de necessidade deve-
riam também ser cobertos, em parti-
cular nas zonas rurais. Ele compara
os hospitais aos bombeiros ou à polí-
cia: “Eles não são pagos unicamente

tendo por base o número de suas in-
tervenções”, argumenta.

AMEAÇA AOS
PROFISSIONAIS DA SAÚDE
O descontentamento relativo ao sub-
financiamento finalmente mudou as
coisas no governo. Desde o começo
de 2020, os hospitais recebem um or-
çamento específico para o pessoal de
cuidados não médicos, doravante
mantidos independentemente do fa-
turamento da atividade. E, durante a
crise sanitária, os estabelecimentos
hospitalares receberam dinheiro pa-
ra os leitos mantidos vazios, a fim de
acolher eventuais pacientes conta-
minados pela Covid-19. Ou seja, o
exato inverso da tarifação por proce-
dimento, na qual um leito sem pa-
ciente não gera nada.
Contudo, nesse caso também, a
epidemia pesou nos caixas dos segu-
ros-saúde e nas contas dos estabele-
cimentos de saúde, que realizaram
poucas cirurgias durante alguns me-
ses. Há quem tema que a discussão
sobre o fechamento dos hospitais
volte rapidamente à mesa. A ameaça
das consequências pesa até sobre os
profissionais da saúde. No cerne da
epidemia, o governo regional da Re-
nânia do Norte-Vestfália – comanda-
do pelo conservador Armin Laschet,
candidato à sucessão de Angela Mer-
kel – quis adotar uma medida para
forçar as pessoas formadas na área
da saúde a trabalhar no hospital,
mesmo contra sua vontade. A pro-
posta suscitou grande oposição e foi
finalmente abandonada. Os ex-en-
fermeiros Axel Hopfmann e Steffen
Hagemann não precisarão, por en-
quanto, voltar a usar uniformes
brancos à força.

*Rachel Knaebel é jornalista.

1 Michael Simon, Von der Unterbesetzung in der
Krankenhauspflege zur bedarfsgerechten Per-
sonalausstattung [De falta de pessoal em cui-
dados hospitalares a pessoal baseado em ne-
cessidades], Hans-Böckler-Stiftung, out. 2018.
2 “Beyond Containment: Health systems res-
ponses to COVID-19 in the OECD” [Além da
contenção: respostas dos sistemas de saúde
à Codiv-19], Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), Pa-
ris, 16 abr. 2020.
3 Zukunftsfähige Krankenhausversorgung [Cui-
dados hospitalares sustentáveis], Fundação
Bertelsmann, Gütersloh, 2019.
4 Ler Philippe Froguel e Catherine Smadja, La
peau de chagrin du système public après six
ans de reaganisme [A pele de onagro do sis-
tema público após seis anos de reaganismo],
Le Monde Diplomatique, jun. 1987. Cf. tam-
bém Reinhard Busse, Alexander Geissler,
Wilm Quentin e Miriam Wiley (dirs.), Diagno-
sis-Related Groups in Europe [Grupos Rela-
cionados aos Diagnósticos na Europa], Open
University Press, Maidenhead, 2011.
5 Fontes: Escritório Federal de Estatística Ale-
mão e Institut Arbeit und Qualifikation da Uni-
versidade de Duisburg-Essen.
6 “Der Ärzte-Appell: Rettet die Medizin!” [O
apelo dos médicos: salvem a medicina!],
Stern, Hamburgo, 1º out. 2019. Disponível
em: http://www.stern.de.

Uma vez privatizados,
os estabelecimentos
se concentram quase
sempre nas doenças
mais lucrativas

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