Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

32 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


A POBREZA RECICLADA PELO CONSUMO


Migalhas suecas


Lutar contra o desperdício alimentar oferecendo às populações pobres preços vantajosos
ou até um trabalho: os supermercados “sociais e solidários” Matmissionen, na periferia
de Estocolmo, apresentam-se como virtuosos. Testemunham, contudo, uma mudança
da Suécia, onde o recuo do Estado social conduziu a uma sociedade desigual

POR YACINE BOUKHRIS-FERRÉ*

M


eio-dia de uma terça-feira
normal, em Hägersten, na
periferia sul de Estocolmo.
Dezenas de clientes aguar-
dam diante dos portões do super-
mercado “social e solidário” Matmis-
sionen (cujo significado é “missão
alimentar”). Os primeiros chegaram
duas horas antes, a fim de obter uma
senha melhor na fila de espera. Po-
dem, enfim, entrar na loja, mas a con-
ta-gotas, não mais de dez por vez. Tal
procedimento estabelecido bem an-
tes da pandemia de Covid-19 visa evi-
tar tumultos.
As portas só ficam abertas do
meio-dia às 17 horas, de segunda a sá-
bado. Todavia, muitos clientes pas-
sam boa parte de seu dia deslocando-
-se para chegar às lojas Matmissionen,
montadas, desde 2015, pela associa-
ção Stockholms Stadsmission na pe-
riferia da capital (a mais recente, em
Jakobsgerg, foi aberta em abril). Mui-
tos não hesitam em aguardar bastan-
te tempo na esperança de eventuais

entregas imprevistas de produtos que
não teriam meios de comprar em um
supermercado comum. Para tornar-
-se cliente-membro e aproveitar os
descontos de pelo menos 70% em re-
lação ao preço do supermercado mais
barato, é preciso estar inscrito em um
programa social ou ganhar menos de
9.972 coroas suecas (R$ 6.351) por
mês. Exceções são abertas de acordo
com o tamanho do lar ou diante de si-
tuações de endividamento. A estrutu-
ra concentra assim sua ação sobre as
unidades familiares que vivem na li-
nha da pobreza (11.830 coroas suecas,
ou seja, R$ 7.535 por pessoa), às vezes
bem abaixo disso. Metade do quadro
de funcionários é composto de assa-
lariados contratados, sendo a outra
metade formada por estagiários, que
recebem uma contribuição a cargo da
agência local para o emprego e condi-
cionada ao cumprimento do estágio.
As compras são levadas bastante a
sério, e a maioria dos clientes aplaude
essa iniciativa, que lhes permite eco-

nomizar em alimentos em um con-
texto social cada vez mais difícil. Isso
possibilita a John T.,^1 por exemplo,
convidar suas duas filhas para jantar
e preparar-lhes belos pedaços de sal-
mão, algo que não poderia servir em
outras circunstâncias. Também con-
segue se dar pequenos prazeres gra-
ças às economias realizadas: uma
caixa de snus (pó de tabaco), café ou
ainda um bilhete de loteria. Nesrin G.,
por sua vez, consegue alimentar seus
cinco filhos e até cozinhar um prato
vegetariano para três deles: “Eles fa-
zem muito exercício físico e evitam
comer carne... Aqui é perfeito. Hoje
peguei verduras e ingredientes para
fazer lasanhas vegetarianas: uma
caixa por 60 coroas suecas (R$ 38)! [...]
A qualidade é importante para nós”.
Para o Natal, um generoso doador
anônimo ofereceu ajuda nas compras
dando 150 coroas suecas (R$ 96) a ca-
da membro, gerando um frenesi entre
a clientela e uma explosão de vendas.

IDEOLOGIA DO “GANHA-GANHA”
Nessas lojas, podemos encontrar
produtos de marcas mais básicas,
mas também de boa qualidade, or-
gânicos etc. Tudo depende do que as
marcas parceiras decidem ceder na-
quele momento. Os Matmissionen se
abastecem junto às redes alimenta-
res clássicas, que se livram assim de
seu excedente quando a data de vali-
dade se aproxima, a embalagem foi
danificada ou quando compraram
mercadorias em excesso. Adqui-
rindo com desconto e no último es-
tágio da cadeia alimentar, esses
clientes conseguem em definitivo
fazer economias nos custos ligados à
triagem, à gestão das reservas e à
destruição dos produtos perecíveis.
Com tantas despesas evitadas para
as empresas que estão por trás do
projeto, o grupo agroalimentar Ax-
food, um dos gigantes nacionais, ob-
teve até um salto no princípio da
“responsabilidade social da em-
presa” (RSE) e pôde em seguida co-
municar seu engajamento em favor
de uma sociedade mais igualitária.
Vistos em muitos aspectos como um
“excesso” do sistema de proteção so-
cial, esses clientes também são inte-

grados ao circuito econômico de
produção de mais-valia.
O Matmissionen aplica uma lógica
empresarial na gestão da insegurança
alimentar: trata-se de fazer os núcleos
familiares de baixa renda consumi-
rem produtos retirados do circuito
mercantil tradicional nos supermer-
cados clássicos. Tal lógica se acompa-
nha de um discurso que retoma a
ideologia do “ganha-ganha”. A comu-
nicação da Stadsmissionen é bem cla-
ra: o objetivo é levar ajuda pontual aos
lares em dificuldade, reforçando seu
egen makt, ou seja, sua capacidade de
recuperar o curso da própria vida.
A irrupção desse tipo de solução
na Suécia se explica pela evolução
ocorrida no país desde os anos 1990,
marcada pelo retorno dos partidos
burgueses ao poder, seguido de um
desvio liberal dos sociais-democra-
tas, que aprovaram o recuo do Esta-
do-providência e a privatização dos
serviços públicos.^2 A redistribuição
de renda não é mais tão igualitária
como já foi, conforme mostra o au-
mento do coeficiente de Gini – medi-
da estatística que determina o nível
de distribuição de riquezas em uma
população. Ainda bem inferior à mé-
dia europeia, passou de 0,21 a 0,28
entre 1985 e 2017, enquanto o da
França passou de 0,30 a 0,31, e o do
Brasil, de 0,60 a 0,53^3 (quanto mais
esse indicador se aproxima de zero,
menores são as discrepâncias de ren-
da). Outrora conhecida por suas polí-
ticas sociais, a Suécia não faz mais
parte da exceção ao aumento da “pre-
cariedade”, com um endurecimento
das condições de acesso às presta-
ções sociais e a um emprego estável.
Essa consolidação liberal do pro-
jeto explica que a ajuda concedida se
concentre na figura do consumidor.
Participando da iniciativa, o setor de
associações de caridade tem por ob-
jetivo um tipo de inclusão das popu-
lações vulneráveis por meio do con-
sumo. Tal maneira de reciclar a
pobreza “alivia” o Estado social, mi-
nimizando as falhas estruturais do
sistema de produção (desperdício,
desemprego, desigualdades), que
não proporciona a todos uma ali-
mentação decente.

*Yacine Boukhris-Ferré é doutorando
em Ciência Política no Centro Émile Dur-
kheim, Universidade de Bordeaux, França,
e ex-voluntário em uma unidade do super-
mercado Matmissionen.
1 As pessoas entrevistadas pediram anonimato,
e seus nomes foram modificados.
2 Ler Violette Goarant, “En Suède, au nom de la
‘liberté de choix’” [Na Suécia, em nome da “li-
berdade de escolha”], Le Monde Diplomati-
que, set. 2018.
3 Fontes: Desigualdade de renda, base de da-
dos da OCDE, 2020; Fabrice Perrin, “Des
inégalités croissantes en Suède...” [Desigual-
dades crescentes na Suécia...], Regards,
A maioria dos clientes aprova a iniciativa, que lhes permite economizar n.45, mar. 2014; e IBGE.

© Unsplash

.
Free download pdf