Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

34 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


brancos preferem queimar seus ído-
los e buscar refúgio em instituições
onde o mérito é medido em termos
de desempenho escolar e de cresci-
mento pessoal.
Essa mudança não deixa de ser
irônica, se lembrarmos que durante a
segunda metade do século X X os asiá-
tico-americanos eram celebrados co-
mo uma “minoria modelo”, em oposi-
ção aos negros e aos latinos. Fingindo
cantar os méritos de uma minoria, o
que se fazia era culpar as outras pela
discriminação estrutural que so-
friam. Se tudo parecia dar certo para
os asiático-americanos, isso não era
prova de que os outros não brancos,
ao contrário do que afirmavam e por
menos motivados que fossem, tinham
plena igualdade de oportunidades? A
América racista podia, assim, disfar-
çar-se de “terra das oportunidades” e
culpar os negros e os latinos por sua
falta de engajamento para subir na es-
cala social. Mas, agora, as caracterís-
ticas antes admiradas – culto ao tra-
balho, senso de disciplina, valores
familiares – subitamente perderam o
valor. O aluno brilhante que ganhava
os louros tornou-se um antissocial de
quem é melhor se afastar.
Essa tática de preservação da su-
premacia branca na ordem social e
econômica não é nova: ela se locali-
za na continuidade do tratamento
administrado aos judeus pela elite
Wasp (sigla para White Anglo-Saxon
Protestant, protestante anglo-saxão
branco), como mostrou o sociólogo
Jerome Karabel. Suas pesquisas ba-
seadas em documentos de admissão
em Harvard, Yale e Princeton revela-
ram a existência de um plano orga-
nizado para limitar estritamente a
matrícula de estudantes judeus, por
meio de critérios nebulosos como
“masculinidade”, “personalidade”
ou “liderança”. Uma política que
mesclasse ao mérito acadêmico jul-
gamentos morais fundados em en-
trevistas “inevitavelmente reduziria


o número de judeus dotados de uma
personalidade ou de modos questio-
n á v e i s”,^5 destaca um desses docu-
mentos. Segundo o Comitê de Ad-
missão de Harvard na década de
1950, a lista de indesejáveis incluía
“neuróticos desalinhados com a co-
munidade”, “instáveis” e suspeitos
de “tendências homossexuais ou
problemas psiquiátricos graves”.
Sem falar, é claro, da exigência de
“lealdade” patriótica, que, durante o
período do macarthismo, permitia
afastar elementos suspeitos de sim-
patia pelo Partido Comunista (então
proibido). Como destaca Karabel, “a
definição de mérito é f luida e tende a
ref letir os valores e interesses da-
queles que têm o poder de impor
suas visões culturais particulares”. A
atual “fuga branca” das escolas fre-
quentadas por asiático-americanos
faz parte dessa redefinição de méri-
to que visa preservar o poder daque-
les que o exercem.

*Richard Keiser é professor de Estudos
Americanos e Ciência Política do Carleton
College (Northfield, Estados Unidos).

1 Ler Serge Halimi, “L’Université de Chicago, un
petit coin de paradis bien protégé” [Universi-
dade de Chicago, um pedacinho do paraíso
muito bem protegido], Le Monde Diplomati-
que, abr. 1994.
2 Willow Lung-Amam, Trespassers? Asian Ame-
ricans and the battle for suburbia [Invasores?
Os norte-americanos de origem asiática e a
batalha pelos subúrbios], University of Califor-
nia Press, Berkeley, 2017.
3 Tomas R. Jimenez e Adam L. Horowitz, “When
white is just alright: how immigrants redefine
achievement and reconfigure the ethnoracial
hierarchy” [Quando branco é apenas razoá-
vel: como os imigrantes redefinem as conquis-
tas e reconfiguram a hierarquia etnorracial],
American Sociological Review, Washington,
DC, 30 ago. 2013.
4 Cf. Allison Levitsky, “For the first time, White
men weren’t the largest group of U.S. hires at
Google this year” [Pela primeira vez, os homens
brancos não foram os mais contratados do ano
no Google dos Estados Unidos], Silicon Valley
Business Journal, San Jose, 5 maio 2020.
5 Esta citação e as seguintes foram extraídas de
Jerome Karabel, The chosen [Os escolhidos],
Houghton Mifflin Harcourt, Boston, 2005.

OS ESGOTOS, SENTINELAS SANITÁRIAS


Bombas


biológicas


nos aeroportos


Se “seguir o dinheiro” é um método comprovado para
investigar a corrupção ou o abuso de poder, “seguir as
águas” é um procedimento eficaz em matéria sanitária.
Já reveladoras em matéria de consumo de opiáceos ou
de antibióticos, as efluências informam preciosamente
sobre a circulação do Sars-CoV-2, o vírus da Covid-19

POR MOHAMED LARBI BOUGUERRA*

A


creditávamos conhecer o cená-
rio da chegada do novo corona-
vírus à Europa com os primei-
ros casos graves detectados no
fim de janeiro e as primeiras mortes
no fim de fevereiro. Na Itália, o Insti-
tuto Superior de Saúde descobriu ou-
tra história, tornada pública em 18 de
junho: “Os resultados, confirmados
em dois laboratórios por dois métodos
diferentes, mostraram a presença de
RNA de Sars-Cov-2 em amostras [de
esgoto] recolhidas em Milão e Turim
em 18 de dezembro de 2019”, explica
Giuseppina La Rosa, do Departamen-
to de Qualidade da Água e da Saúde.
“Já as amostras de outubro e novem-
bro de 2019, bem como todas as amos-
tras de controle, apresentaram resul-
tados negativos.”^1 Essa descoberta,
preciosa para compreender os meca-
nismos de difusão da pandemia vinda
da China, foi recuperada por um estu-
do retrospectivo de amostras respira-
tórias do fim de dezembro de 2019 na

França e nas águas de Barcelona, po-
sitivas quarenta dias antes do primei-
ro caso confirmado oficialmente.
As redes de saneamento transpor-
tam resíduos químicos do metabolis-
mo humano ricos em informações
sobre a alimentação, os medicamen-
tos e até mesmo substâncias ilegais
ingeridas, mas também sobre doen-
ças das quais a população sofre.
“Uma estação de tratamento pode
captar as águas residuais de mais de
1 milhão de pessoas”, explica o pro-
fessor Gertjan Medema (Universida-
de de Tecnologia de Delft, Instituto
Holandês de Pesquisas sobre a Água),
que estuda a transmissão de doenças
infecciosas no meio aquático.^2 O es-
tudo e o acompanhamento dos f lu-
xos fornecem melhores estimativas
do progresso do coronavírus que os
exames médicos, pois essa supervi-
são levaria em conta, segundo ele, os
indivíduos que só apresentam sinto-
mas leves ou não apresentam ne-

.
Free download pdf