Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37


se propagar no mundo do cinema:
um universo de homens, onde Alice
Guy só pôde interferir graças a suas
qualidades excepcionais.
Todavia, essa visão é contestável:
entre 1908 e 1920, houve bem mais
que apenas uma pioneira entre os
desbravadores da sétima arte, e mais
que as oito listadas em uma simples
nota de rodapé em La Parade est pas-
sée,^2 principal obra do diretor e histo-
riador Kevin Brownlow sobre o cine-
ma mudo holly woodiano. No atual
estado das pesquisas, contabilizam-
-se diversas dezenas, a quem pode-
mos atribuir quase duzentos filmes
ou serials, folhetins muito populares
nos quais se acompanhava a cada se-
mana um novo episódio das aventu-
ras de um personagem cativante.
Em 1918, entre a pequena centena
de filmes produzidos pelo estúdio
Universal, cerca de vinte teriam sido
dirigidos por mulheres. Também en-
traram maciçamente na escrita de
roteiros e adquiriram um conheci-
mento que lhes serviu quando o lon-
ga-metragem se tornou a norma. Pu-
deram então participar da era de
ouro do cinema mudo, e alguns no-
mes se tornaram lendários a partir
daí: June Mathis, com Os quatro ca-
valeiros do apocalipse, dirigido por
Rex Ingram (1921), e Ben-Hur, de Fred
Niblo (1925); Anita Loos, com Intole-
rância, de David Ward Griffith (1916),
e Os homens preferem as loiras, de
Malcolm St. Clair (1928), a primeira
adaptação de seu romance (1925), re-
tomado depois pela Broadway e a
partir do qual Howard Hawks faria
em 1953 uma versão que ficou famo-
sa; Frances Marion, com O filho do
sheik (1926), de George Fitzmaurice,
interpretado por Rudolph Valentino,
e Vento e areia (1928), do grande Vic-
tor Sjöström. Mesmo o retrógrado
Cecil B. DeMille, que se queixava
dessa feminização, teve ao seu lado
uma roteirista muito eficiente, Jeanie
MacPherson (Enganar e perdoar, Ma-
cho e fêmea...), que contribuiu bas-
tante para seu renome.
Quase sempre, aquelas que pas-
saram para a direção vieram do ro-
teiro. É o caso de Frances Marion
(1888-1973), que dirigiu três filmes.
Foram tantas contribuições impor-
tantes, muito inferiorizadas pelos
historiadores, com cada vez mais fa-
cilidade, que os anos 1920 afasta-
riam com força as mulheres da dire-
ção. Foi o que testemunhou a carreira
e a posterioridade da memorável
Lois Weber (1879-1939). Marcada por
ideias evangélicas e pelo espírito
missionário da Church Army Worker
(equivalente ao Exército da Salva-
ção), a primeira mulher a dirigir um
longa-metragem (O Mercador de Ve-
neza, 1914) exerceu durante mais de
25 anos o trabalho de cineasta e seria


a única, com Dorothy Arzner (1897-
1979), a dirigir ao mesmo tempo fil-
mes mudos e falados.
Ao contrário de suas colegas, que
desapareceriam irremediavelmente
nos anos 1920 após terem dirigido
apenas alguns filmes, Lois Weber
construiu uma obra colossal entre
1911 e 1938, compreendendo pelo me-
nos duzentos curtas e cerca de trinta
longas-metragens. Teria sido sobretu-
do “o” diretor mais bem pago de
Holly wood antes da guerra, pois, em-
bora trabalhasse com seu marido,
não há dúvidas sobre sua proeminên-
cia na responsabilidade das obras –
ela escreveu os roteiros, as legendas,
interpretou, dirigiu, concebeu os ce-
nários e os figurinos. E, em 1915, foi
considerada, segundo sua biógrafa
Shelley Stamp,^3 equiparada a David
Ward Griffith e Cecil B. DeMille. Po-
rém, enquanto o primeiro se desta-
cou com O nascimento de uma nação,
para a glória da Ku Klux Klan, e o se-
gundo alimentou clichês racistas
com Enganar e perdoar, no qual des-
creve um japonês refinado marcando
com ferro quente uma infeliz branca,
Lois Weber tratou da vida cotidiana
dos norte-americanos e abordou te-
mas sociais. Ela usou do poder singu-
lar, do qual entendeu que o cinema
era dotado, para sensibilizar sobre
grandes assuntos bastante incômo-
dos, como o controle de natalidade e
o planejamento familiar (Where are
my children?, 1916), o que ocasionou
reações bem marcantes, a pobreza
que leva à prostituição (Shoes, 1916), a
pena de morte (The People vs John
Doe, 1916)... Abordou também sem ta-
bu, embora seu feminismo fosse às
vezes um pouco moralista, os proble-
mas das mulheres em uma sociedade
dominada pelos homens. Em Hypo-
crites (1915), permitiu-se até algo iné-
dito que fez barulho e garantiu o
triunfo do filme: em superposição,
uma mulher aparece totalmente nua
representando a verdade.
Considerada uma hábil e inventi-
va técnica, trabalhando tanto sua for-
ma como sua mensagem, como prova
seu curta-metragem Suspense (1913 ),
no qual inova separando a tela em
três ações, Lois Weber transformou
em cada trabalho suas atrizes em ve-
detes, como Mildred Harris e Claire
Windsor, e contribuiu para criar o
star system. Quando Carl Laemmle,
fundador da Universal, onde ela tra-
balhou, conseguiu convencer a preço
de ouro a famosa dançarina russa
Anna Pavlova a aparecer em The
dumb girl of Portucci (1916), foi a Lois
Weber a quem confiou o projeto.
Apesar de sua grande notorieda-
de, a realizadora foi perdendo pouco
a pouco essa posição invejável. O ci-
nema, antes quase artesanal, tornou-
-se uma indústria capitalista como as

outras. Ao longo dos anos 1920, os
principais estúdios se reagruparam,
fazendo nascer os sete majors que
controlam Holly wood. Ligados ao big
business, seus dirigentes pertenciam,
daquele momento em diante, à socie-
dade sofisticada e adotaram posições
bem conservadoras. Apelaram, desde
1922, a William Hays, um republica-
no próximo ao presidente Warren
Harding, para estabelecer regras de
censura que buscavam combater
tanto as ideias progressistas como os
atentados aos bons costumes. Foi o
nascimento, em 1922, da Motion Pic-
ture Producers and Distributors of
America (MPPDA), que estabeleceu
em 1934 o Código Hays, garantindo
por muito tempo a moralidade holly-
woodiana (proibição de beijos “lasci-
vos”, de união de indivíduos de “ra-
ças” diferentes, de representação
negativa da religião etc.).

Como o custo dos filmes viria a
aumentar, os estúdios também foram
“racionalizados”, acabando com o
tempo no qual, para retomar uma ex-
pressão de Lois Weber, “cada um fa-
zia um pouco de tudo”. O departa-
mento de roteiros passou a ficar sob o
comando do departamento de pro-
dução. Os autores-diretores, incluin-
do D. W. Griffith, desapareceram um
após o outro, ao passo que Irving
Thalberg, um dos novos barões da
produção da Universal, impôs ali sua
lei, eliminando o incontrolável Eric
von Stroheim de seu filme Esposas in-
gênuas (1922) e instalando alguns di-
retores mais dóceis. Para resumir, foi
o fim dos “autores”.
As mulheres eram alvo de críticas
específicas. Alguns acreditavam que
a mensagem destilada em seus filmes
era “feminista” por natureza, obsti-
nada a provar que não havia “sexo frá-
gil”. De fato, quando, no começo dos
anos 1910, estavam no comando dos
serials, atrizes e diretoras colocavam
em cena heroínas intrépidas e bondo-
sas, modernas e anticonformistas,
como Pearl White em Os perigos de
Paulina (1914). Esta última possuía,
aliás, o físico de uma jovem garota
bem simples, em oposição a uma cria-
tura glamour concebida para fazer os
homens sonharem e estimular suas
acompanhantes a comprar roupas e
cosméticos vistos na tela. Na era da
prosperidade dos anos 1920, a indús-
tria cinematográfica precisava ser a

vitrine de um luxo que se democrati-
zava – e não uma incitação à liberação
das mulheres ou o eco dos problemas
cotidianos da mãe de família, temas
estimados por Lois Weber.
No entanto, ela iria dirigir ainda
mais filmes, conservar seu estatuto e
um salário elevado. Porém, ela cons-
tatou, impotente, sua marginaliza-
ção. No contexto do star system, que,
contudo, ajudou a construir, seus fil-
mes de assunto social não faziam so-
nhar. Queixava-se de estar sujeita a
um sistema hierarquizado que a obri-
gava a discutir sem parar tudo aquilo
que fazia antes sem embaraços: os ci-
neastas eram agora empregados; não
se tratava mais de popularizar os de-
bates, e sim de produzir divertimen-
to. Nos anos 1930, Lois Weber só con-
seguiu dirigir um filme falado.
Ref letiu então com a administração
Roosevelt sobre o desenvolvimento
da educação por meio do cinema, ar-
te que estimava ser a única capaz de
reduzir no futuro as desigualdades
culturais e sociais. Em 1939, sua mor-
te súbita aos 60 anos a impediu de
concretizar seus projetos.
Algum tempo após sua partida, os
arquivos da Universal pegaram fogo.
Sabemos que o nitrato de celulose era
terrivelmente inf lamável e podia até
explodir. Por isso, 75% dos filmes pro-
duzidos na era do mudo foram perdi-
dos de modo irremediável.^4 Quase to-
da a obra de Lois Weber virou fumaça.
No momento atual, só conseguimos
ver alguns de seus curtas-metragens,
como o famoso Suspense, e três de
seus longas-metragens (Shoes, The
Dumb Girl of Portucci, The Blot):^5 os
restauros priorizaram os diretores
cujo nome foi destacado pelos histo-
riadores do cinema.

*Philippe Person é escritor.

1 Be Natural [Seja natural] (2018) estreou no
cinema em 24 de junho. Uma autobiografia
foi publicada pela editora Denoël-Gonthier
(1976 ).
2 Kevin Brownlow, La parade est passée [A pa-
rada passou], Actes Sud, 2011.
3 Shelley Stamp, Lois Weber in early Hollywood
[Lois Weber no começo de Hollywood], Uni-
versity of California Press, 2015. Ver também
“Weber, Lois, A Dream in Realization, Inter-
view with Arthur Denison” [Weber, Lois, um
sonho em realização, entrevista com Arthur
Denison] Moving Picture World (21 jul. 1917)
em Richard Koszarski (org.), Hollywood Di-
rectors 1914-1940, Oxford University Press,
Oxford, 1976. Também Antonia Lant (org.),
Red Velvet Seat: Women’s Writing on the First
Fifty Years of Cinema [Assentos de veludo
vermelho: escrita das mulheres dos primeiros
cinquenta anos do cinema], Verso, Londres-
-Nova York, 2006, e Martin F. Norden (org.),
Lois: Interviews [Entrevistas de Lois Weber],
University Press of Mississippi, 2019.
4 Cf. Dawson City: le temps suspendu [Dawson
City: tempo suspenso], documentário de Bill
Morrison, 2016.
5 Uma caixa de quatro DVDs, Les Pionnières
du cinéma [As pioneiras do cinema] (2018),
reúne, entre outros, filmes de Alice Guy, Lois
Weber (The Blot), Mabel Normand, Dorothy
Arzner e Dorothy Reid Davenport. Lobster,
480 minutos.

Alguns acreditavam que
a mensagem destilada
em seus filmes era “fe-
minista” por natureza,
obstinada a provar que
não havia “sexo frágil”
.
Free download pdf