Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

38 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


NOVAS NARRATIVAS DA WEB

Sites e projetos que merecem seu tempo

OCEANO DE LIVROS
O Google lançou um site em seu labora-
tório de experiências culturais que é um
mapa literário por afinidades. Cada ilha
representa um autor, e cada cidade é um
livro. A distância ou proximidade entre au-
tores foi calculada por um algoritmo que
analisa a web e as complexas relações de
links, por meio de um método matemáti-
co de machine learning de aproximação e
projeção de pontos. Isso explica por que a
maior ilha perto de Freud, por exemplo, é
Marx, ou por que, no arquipélago dos clás-
sicos, Shakespeare está perto de Robert
Louis Stevenson, Dostoievsky e Charles
Dickens. Navegue.
<https://artsexperiments.withgoogle.
com/ocean-of-books>

FÁBRICA DE TROLLS
Já pensou como são feitas, na prática,
as campanhas de desinformação e fake
news? Troll Factory foi desenvolvido por
um time de especialistas da empresa fin-
landesa de comunicações Yle. A equipe
usa métodos combinados de jornalismo,
storytelling, games e interatividade para
contar melhor uma história. O jogo usa
conteúdo real de fake news, encontrado
em materiais que circularam na Europa. A
produção de ódio e a discriminação contra
imigrantes são o foco da reportagem.
<trollfactory.yle.fi>

TODOS OS VOOS DO MUNDO
Em tempo real, nesse site você pode ver
onde está cada avião no mundo, seus ho-
rários de chegada previstos, de onde vie-
ram e para onde estão indo. Flightradar24
começou em 2006 como um hobby de
dois programadores suíços, que construí-
ram uma rede que captava informações do
sistema aéreo. Em 2009 abriram a rede
para colaborações e desde então captam
dados do mundo inteiro. Alguns lugares
ainda não estão bem cobertos, mas é pos-
sível ter uma boa ideia da quantidade de
voos – e imaginar a poluição gerada pelo
sistema aéreo a cada minuto.
<https://www.flightradar24.com/>

[Andre Deak] Diretor do Liquid Media
Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
pela ECA-USP e doutorando em Design
na FAU-USP.

livros internet

A


s cenas não poderiam passar despercebidas – e
não passam. Em meio ao crescimento vertiginoso
das mortes por Covid-19 no Brasil, o comportamento
de Jair Bolsonaro parece descolado da realidade. Ora
o presidente sai para passear de jet ski, ora esban-
ja felicidade junto aos seus apoiadores em suas saí-
das por Brasília; quando questionado por repórteres
a respeito de temas sensíveis ao governo, ri sardoni-
camente, meio de lado, um riso sarcástico e doentio.
É difícil relacionar as cenas com as quais Bolsonaro
nos bombardeia diariamente no cargo que ele ocupa,
governando um dos países com pior desempenho no
combate à pandemia de Covid-19.
Suponho que sejam essas as atitudes de “escárnio
presidencial pela vida” às quais Marcos Nobre se re-
fere no último parágrafo de seu ensaio Ponto-final. As
atitudes do presidente causam, ainda nas palavras do
filósofo, “raiva desmesurada”. É essa raiva, capaz de
cegar a ponto de reafirmar a cultura bolsonarista da
morte, que Nobre nos convida a deixar de lado em seu

A


pecuária industrial hoje, além de atuar sobre o me-
lhoramento genético de espécies de porcos, bois
e galinhas, cultiva suas próprias cepas de vírus e bac-
térias no coração de suas práticas de criação e abate
intensivo. De acordo com Rob Wallace, já estaríamos
vivendo sob a égide de uma epidemiologia inscrita no
sistema capitalista de produção de doenças.
Há mais de duas décadas, o biólogo evolutivo vem
construindo um esforço interpretativo complexo e in-
terdisciplinar para investigar as origens dos patóge-
nos de potencial pandêmico na forma como a socie-
dade organiza suas atividades produtivas. Com base
no estudo de diversas epidemias – como a gripe suína
(H1N1) em 2009 no México e a gripe aviária (H1N1)
em 2003 na China –, Wallace varre a geografia eco-
nômica mundial a contrapelo, registrando cuidadosa-
mente um conjunto robusto das causas que as pro-

MISCELÂNEA


PONTO-FINAL:
A GUERRA DE
BOLSONARO
CONTRA A
DEMOCRACIA
Marcos Nobre,
Todavia: São Paulo, 2020

PANDEMIA E
AGRONEGÓCIO:
DOENÇAS INFECCIOSAS,
CAPITALISMO E CIÊNCIA
Rob Wallace,
Elefante & Igrá Kniga

livro. Chamar Bolsonaro de burro e louco é “desobrigar
a pensar”, defende Nobre. É também conceder uma
vitória ao projeto político de Bolsonaro: as atitudes do
presidente são, de certa forma, despolitizadas, quan-
do consideradas provenientes de um comportamento
desvairado. Afinal, “Bolsonaro conquistou essa hege-
monia no debate”, escreve Nobre, “não porque ganhou
a eleição, simplesmente. Conseguiu porque passamos
a aceitar debater e pensar nos termos dele”.
Ponto-final é, antes de mais nada, uma tentativa
de escape, de recusar os termos que Bolsonaro nos
impõe. Assim, o que há de mais fascinante nessa em-
preitada é a existência de um caráter de experimen-
to no livro. Rejeitar a maneira pela qual Bolsonaro
organiza o real, resistir à imposição das categorias
bolsonaristas de pensamento é por si só um exercí-
cio vertiginoso; uma aposta na necessidade de com-
preender esse nebuloso projeto autoritário enquanto
ele toma forma.
Ponto-final, o livro, é um ensaio, um esforço vertigi-
noso de compreender eventos avassaladores em meio
ao seu transcorrer. Dessa forma, ao pretender escapar
da máquina de captura bolsonarista, a pontuação que
melhor o descreve são as reticências, a continuidade
do debate, no lugar do abrupto encerramento de uma
frase. Similarmente ao canhão de luz de um navio à
deriva, Ponto-final não propõe exatamente um rumo
a ser seguido, e sim situar o lugar em que nos encon-
tramos em meio ao nevoeiro, com a esperança de, um
dia, dele podermos sair.

[Fabio Zuker] Jornalista.

duziram na interface entre a pecuária intensiva e os
sistemas agroecológicos locais e regionais.
Nos celeiros de abate de aves e porcos, na calada
da noite e por baixo de toda a proteção em biosse-
gurança, a peste não dorme. Passando às costas de
cientistas e gestores industriais, todos os anos, cepas
de vírus recém-emergentes decifram a biologia de ani-
mais criados por meio de monocultivo genético, levan-
do à morte celeiros inteiros.
Visto do ponto de vista da pandemia, a forma como
o mundo produz alimentos manifesta sua inscrição em
um projeto autodestrutivo, que cultiva epidemias no
coração de suas práticas ecológicas e econômicas. A
produção de doenças em escala põe em movimento
uma epidemiologia própria ao capitalismo, considerada
em sua geografia relacional de causas múltiplas inter-
conectadas. Tal perspectiva nos afasta das concep-
ções da medicina colonial, tributárias de uma geografia
absoluta que identifica patógenos em práticas isola-
das, por vezes consideradas exóticas, seja na produção
e consumo de alimentos, seja nas práticas de funeral e
sepultamento de mortos dos povos colonizados.
Enfim, resta-nos saber se a epidemiologia capita-
lista, sob a égide do obscurantismo bolsonarista, será
também capaz de cultivar sua própria cepa de vírus no
coração de sua catastrófica ecologia.

[Allan Rodrigo de Campos Silva] Mestre e doutor
em Geografia Humana pela USP.

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