Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

4 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


NA MIRA DO TIRANO


Arte e cultura


da ponte pra cá


E


u tinha pelo menos 12 anos
quando descobri que era negra,
afrodescendente, mestiça, afro-
-indígena. Pareceria estranho
dizer isso se não soubéssemos que o
Brasil é um país estruturalmente
racista e que há tempo demais temos
sido coniventes. Nesse mesmo pro-
cesso descobri coisas sobre minha
identidade, meu bairro, meu lugar no
mundo e também sobre mundos do
lado de lá da ponte – antes mesmo de
vê-los com meus olhos. Foram os por-
tais do rap, da cultura, da produção
cultural exercida como profissão de fé
por artistas favelados que não ganham
nem nunca ganharam o suficiente
para viver apenas de sua arte.
Em meio a chacinas, violências de
toda sorte, desemprego e diásporas
forçadas, as rimas dos anos 1990 con-
tavam não somente sobre a vida du-
ra, mas também sobre uma ética que
se constituía entre iguais – tentando
sobreviver ao movimento do capital e
sua expansão neoliberal que tragava

nossa vida para a ciranda do dinhei-
ro. O rap narrava a tragédia das esta-
tísticas, nomeava mortos que antes
figuravam apenas como números e
apontava um desejo de futuro para a
fratria órfã:^1 vida tranquila “num ter-
reno no mato [...], sem luxo, descalço,
nadar no riacho, sem fome, pegando
as frutas no cacho”.^2
Esse desejo não se realizou: o
adensamento das metrópoles e seu
decorrente problema habitacional –
de falta, inadequação ou inseguran-
ça – foi ampliado, com a moradia
consolidada definitivamente entre
as mercadorias que só acessa quem
tem dinheiro. A alimentação possível
para nós, antes marcados pela chaga
da fome, se deu pela via do mercado
de comodities, convertendo nossa
fome em ativos da Bolsa de Chicago,
regados a agrotóxico. A água está
prestes a ser privatizada por esse
desgoverno genocida.
Mas outros desejos se realiza-
ram, e eles reafirmam tanto a arte e

a cultura quanto a educação como
inimigas do fascismo, do autorita-
rismo e do conservadorismo. Apren-
demos a escrever, aprendemos a ler,
aprendemos sobre nossa ancestrali-
dade e nossa capacidade de produ-
zir mundos diferentes daquele que
encontramos ao chegar aqui, sobre
nossa capacidade de organização e
nosso poder quando estamos jun-
tos, caminhando na mesma direção.
Em saraus espalhados pelas perife-
rias, nós nos alfabetizamos de fato
quando não tínhamos dinheiro nem
sequer para um busão até o centro
da cidade.
Cultura e arte possuem o poder
de desenhar realidades que ainda
não existem, de vislumbrar modos
diferentes de viver, revelando que o
modo como vivemos não é natural e
pode ser mudado, transformado, re-
volucionado. Como um respiro de
lucidez no meio da guerra, a arte
oferta ao motoka entregador a possi-
bilidade de elaborar a própria vida

em rimas que partilha com seus
iguais. Oferta a possibilidade de pa-
rar por um segundo e olhar para nós
mesmos e nossa vida, de sermos –
como Carolina Maria de Jesus – ela-
boradores de nossa própria expe-
riência, protagonistas de nosso
destino, escritores do nosso drama e
da nossa rebelião.
Por essas razões, a arte e a cultura
figuram sempre entre os maiores ini-
migos da tirania e da opressão e, do
rap em diante, quase três décadas de-
pois, olhar as crianças nas escolas
com seus cabelos black power, orgu-
lhosas de seu rosto e de seu nariz, me
explica de certa maneira por que é
que o presidente e seus asseclas de-
clararam guerra.
Para quem quer conservar as coi-
sas como elas estão, a cultura e a arte
são mesmo perigosíssimas, e elas
também habitam as veias dos movi-
mentos de mulheres, nos feminismos
que revelam invisibilizadas existên-
cias femininas. Para as vidas brancas

Aprendemos a escrever, aprendemos a ler, aprendemos
sobre nossa ancestralidade e nossa capacidade de
produzir mundos diferentes daquele que encontramos ao
chegar aqui. Em saraus espalhados pelas periferias, nós
nos alfabetizamos de fato quando não tínhamos dinheiro
nem sequer para um busão até o centro da cidade

POR HELENA SILVESTRE*

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