Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5


e sempre nomeadas talvez seja difícil
compreender o tamanho do passo
que é perceber-se a si próprio e reco-
nhecer-se em si mesmo. Para o mar-
xismo, poderia ser chamado de em si e
para si, mas direi apenas que a cultu-
ra e a arte permitiram que nos reco-
nhecêssemos como negras e passás-
semos a questionar representações
sempre brancas, que não dizem res-
peito à representatividade, mas, ao
contrário, revelam dispositivos de
controle e/ou tutela. Visibilizar para
questionar nossos piores salários,
nossa maioria entre desempregadas e
trabalhadoras precárias, o porquê de
vivermos aglomeradas, de sermos os
mais assassinados e a maioria abso-
luta entre famintos e encarcerados.
Cultura e arte não são apenas so-
bre obras, mas sobre modos de viver.
Esta é a potência que localiza tan-
to a cultura e a arte (como também a
educação) entre os principais inimi-
gos do atual governo. A arte, assim
como a política, é exercício de desna-


turalização do agora e possibilidade
de criação consciente do futuro.
Os poderes instituídos buscam
desidratá-la de suas possibilidades
revolucionárias, criminalizando o
que não conseguem capturar ou do-
mesticar. Um dos principais meca-
nismos utilizados em democracias
liberais é arrancar as condições ma-
teriais necessárias à produção cul-
tural e artística por parte dos po-
bres. Exemplifico. Os gastos do setor
público com o financiamento à cul-
tura sempre foram pífios e ainda as-
sim vêm sendo reduzidos. Em 2011,
destinou-se para a área cultural
0,28% do total de despesas consoli-
dadas da administração pública.
Nem meio por cento e, mesmo as-
sim, em 2018, esse montante foi re-
duzido a 0,21%,^3 restringindo o di-
reito a produzir arte e cultura e,
portanto, a produzir narrativa, re-
gistro, memória e identidade a quem
tem poder econômico (ou amigos
mecenas – o que dá no mesmo).

Mas ao longo dos anos, impulsio-
nados pela fome da alma, os mesmos
que foram privados do direito a pro-
duzir arte têm lutado por essa possi-
bilidade com unhas e dentes. Progra-
mas como Cultura Viva, Pontos de
Cultura, Programa VAI ou a Lei de Fo-
mento à Periferia nasceram na mar-
ra, arrancados pela mobilização de
artistas populares e/ou periféricos.
Segundo a Pnad, o segmento da cul-
tura soma mais de 5 milhões de tra-
balhadores, dos quais 44% são autô-
nomos,^4 dependendo de eventos e
contratações sazonais para sobrevi-
ver, já que editais e fomentos públi-
cos não alcançam a maioria.
A realidade geral é tanto mais dra-
mática nas periferias. Aqui, o genocí-
dio não é uma experiência nova, mas
a pandemia e a política assassina dos
governos exacerbaram ainda mais a
tragédia, trazendo luto a muito mais
que 100 mil famílias, já que padece-
mos a tristeza de perder crianças des-
pencando pelo vão do elevador.
A fome, que nunca desapareceu
completamente de nós, atingiu uma
velocidade maior que a do vírus e
muito maior que a das políticas pú-
blicas de assistência, fazendo artistas
populares e produtores culturais pe-
riféricos – que já desenvolviam sua
produção em condições absurda-
mente precárias – ficar em total de-
samparo: cancelamento de todas as
atividades, redução ainda maior dos
recursos empregados nos programas
de fomento (vide o Programa VAI, por
exemplo) e fim dos bicos que faziam
em quaisquer outras áreas para pa-
gar as contas.
O drama é grave, já que quase to-
dos esses artistas ganham tão pouco
que não possuem reservas e já no pri-
meiro mês de emergência sanitária se
encontravam em situação extrema-
mente vulnerável, até mesmo para
comer duas refeições por dia.
Além da falta de recursos e de to-
dos os agravantes que pesam sobre a
população periférica (como mora-
dias superlotadas, falta de água, au-
mento da letalidade policial etc.), so-
fremos com o isolamento social que
abala nossa saúde mental, já que os
espaços de encontro onde nos reali-
zamos como fazedores culturais são
também aqueles em que elaboramos
nossa existência como resistência,
além da tragédia. São espaços que
nos permitem vislumbrar outro
mundo, em que nós, como artistas e
como povo periférico, existiremos
plenamente.
Diante do caos, invocamos então
as mesmas tecnologias que nos am-
pararam durante quinhentos anos de
colonização, aquelas que nos preser-
varam quando nossos cultos e dan-
ças foram criminalizados e nos man-
tiveram de pé nos anos 1990. Para

nenhum de nós há solução indivi-
dual, e é apenas em comunidade que
logramos manter-nos vivos, física e
artisticamente.
O tão falado autocuidado, aqui,
não se dedica exclusivamente a re-
pensar práticas e hábitos que nos su-
portem individualmente: só existi-
mos em comunidade e, portanto,
autocuidado é cuidar da nossa exis-
tência e da existência de nossas co-
munidades, sem as quais não somos
possíveis.
Os coletivos culturais de periferia,
mais enraizados e com capilaridade
maior do que muitas organizações
monolíticas, passaram a atuar cole-
tando doações de alimentos, distri-
buindo comida, fraldas, leite, ajudan-
do pessoas a se cadastrarem nos
auxílios possíveis, provendo acom-
panhamento psicológico aos mais
fragilizados. Foi dessa maneira que
os artistas de periferia construíram
caminhos para sanar sua fome de co-
mida, porque nosso destino se con-
funde com o destino de nossos terri-
tórios. Essa mobilização, stricto
sensu, não se definiria como ativida-
de artística, mas certamente como
prática cultural, pois defende a vida
dos nossos contra a necropolítica do
poder, e nosso modo de viver contra o
disciplinamento total.
A tarefa de primeira hora assumi-
da pelo movimento de cultura da pe-
riferia foi a de defender a vida. É exa-
tamente por isso que esse movimento,
embora descentralizado, angaria
apoio de parcelas cada vez maiores
da população e provoca a construção
de mediações como a Lei Aldir Blanc,
que terá grande importância para to-
des, mas que não nos ilude em rela-
ção ao caráter nefasto de nossos
governantes.
Isso porque, muito antes de a lei
ser aprovada, nos organizamos em es-
paços autônomos e virtuais de produ-
ção, reinventando nossas possibilida-
des, ainda que apoiadas em condições
precárias de conexão, como as que se
impõem a todes nas bordas da cidade.
Fizemos e seguiremos fazendo, para
alimentar nossa gente de horizontes
mais amplos do que este presente en-
carcerado, e porque não desistimos
de debater, de formar e informar, de
educar onde tudo falta; não desisti-
mos de disputar o futuro.

*Helena Silvestre é escritora periférica,
editora da Revista Amazonas e educadora
na Escola Feminista Abya Yala.

1 Termo de Maria Rita Kehl que dá nome a uma
coletânea de textos seus publicada em 2008.
2 “Vida Loka, parte 2”, Racionais MC’s.
3 Carmen Nery, “Participação da cultura no or-
çamento reduz em todas esferas de governo
em 2018”, Agência IBGE, 5 dez. 2019.
4 Pedro Stropasolas, “Primeiros a parar na pan-
demia, profissionais da cultura relatam abando-
no do governo”, Brasil de Fato, 30 abr. 2020.

© Moises Patrício

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