Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

6 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


D


esde que a vitória de Jair Bolso-
naro começou a parecer certa,
o setor cultural ficou em alerta.
Por uma simples razão: ele já
havia escolhido a cultura como ini-
miga. E, sim, a cultura é realmente
sua inimiga. Não pode ser diferente
quando consideramos seu perfil.
O desmonte na área promovido
por ele desde que assumiu o poder
era esperado. Da extinção do Minis-
tério da Cultura à tentativa de retirar
do MEI profissões ligadas às produ-
ções artísticas, passando pelas péssi-
mas escolhas dos presidentes da
Fundação Nacional das Artes, da
Fundação Palmares e dos cinco se-
cretários que, em apenas um ano e
meio, estiveram a passeio pela Secre-
taria de Cultura. Tudo isso só mostra
o vazio que esse tema ocupa em sua
mesa e o ódio que o presidente culti-
va pela cultura brasileira.
Mas, fazendo um exercício de
olhar o passado recente, não foi só
quando Bolsonaro assumiu que co-
meçamos a perder campo, infeliz-
mente. Evidente que tudo ficou mui-
to pior, não há parâmetro histórico.
Nunca vivemos um momento tão ter-
rível para quem vive de cultura no
Brasil, desde sua redemocratização.
No entanto, atacar esse projeto é um
pouco mais fácil. Difícil e doloroso é
aceitar que, mesmo nos governos do
campo da esquerda, muitas vezes a
cultura não tem o protagonismo e a
estabilidade que merece.
O Ministério da Cultura teve sua
fase gloriosa na era do ex-presidente
Lula quando foram criados e execu-
tados projetos que poderiam ter
mudado definitivamente a forma
como o Brasil cria, produz e conso-
me sua arte e cultura. Finalmente,
memória, preservação, fruição, des-
centralização eram os objetivos dos
programas dessa época, que conce-
deram, pela primeira vez na história,

status de prioridade para a produção
artística brasileira.
Foi feita uma escuta grandiosa
por meio de conferências, seminá-
rios e encontros diversos pelos rin-
cões do Brasil. Políticas públicas efi-
cazes saíram dali, como o Plano
Nacional de Cultura e os planos seto-
riais, que deveriam ter se tornado po-
líticas de Estado, garantindo a per-
manência entre diferentes governos.
Acreditava-se à época que esses ga-
nhos seriam definitivos. Não foram.
Basta acompanhar a linha do tempo
a partir do primeiro mandato da pre-
sidenta Dilma Rousseff.
Possivelmente de forma não
intencional, as escolhas de Ana de
Hollanda e Marta Suplicy enfraque-
ceram o ministério. Ambas trouxe-
ram de volta os ares da elite intelec-
tual paulista para a cadeira, afas-
tando o diálogo com os fazedores de
cultura em sua imensa diversidade e
procedências. Houve um esfria-
mento dos programas já existentes
criados pela dupla baiana Gilberto
Gil e Juca Ferreira.
No segundo mandato, a presiden-
ta Dilma trouxe de volta Juca para as-
sumir o MinC. Mas, sem tempo de re-
tomar o fôlego, ele caiu junto com ela,
no golpe de 2016. Caíram também as
expectativas de voltarmos a ter pro-
tagonismo na cultura.
Daí para a frente, a sequência de
tragédias para o segmento cultural,
como para o próprio país, é
estarrecedora.
Quem primeiro tentou extinguir o
MinC foi o ex-presidente Michel Te-
mer, mas recuou. Em dois anos de
mandato, revezaram-se quatro mi-
nistros no cargo. Todos receberam
severas críticas da classe artística,
também indignada com o golpe.
A ascensão de Bolsonaro à Presi-
dência da República consolida de for-
ma incomparável o enfraquecimento

e a sabotagem à memória e à preser-
vação da cultura brasileira.
Chegou 2020 e com ele a pande-
mia de Covid-19, completando o ce-
nário de escassez e caos. O setor cul-
tural, que já vinha se mantendo com
muita dificuldade, viu-se em extrema
vulnerabilidade.
A cultura brasileira é tão hetero-
gênea que, num momento dramático
como este, as desigualdades ficam
ainda mais expostas. A forma como a
cultura no Brasil é produzida, finan-
ciada e consumida é completamente
diferente entre suas regiões e, obvia-
mente, as consequências desse trau-
ma que estamos vivendo também são
radicalmente diferentes entre os que
vivem da cultura.

Mesmo durante o governo Lula fi-
cou nítida a concentração de finan-
ciamentos de projetos culturais nas
cidades sudestinas. Essa foi uma
grande luta na época: entender como
seria possível descentralizar os re-
cursos da Lei Rouanet e sensibilizar
os patrocinadores a investir em ou-
tros territórios e em projetos fora do
ambiente mainstream.
Nunca houve êxito, nem mesmo
com ministros nordestinos e, por is-
so, mais sensíveis à importância da
descentralização e democratização
do acesso aos mecanismos de finan-
ciamento a projetos culturais.
Rio de Janeiro, São Paulo e, esti-
cando um pouquinho mais, Minas
Gerais e Distrito Federal sempre con-

seguiram patrocinadores e visibili-
dade midiática para seus projetos.
Enquanto no Nordeste, por exemplo,
onde nasci e vivo, os trabalhadores
da cultura precisam lutar muito mais
para conquistar espaço entre as car-
teiras de clientes das marcas priva-
das ou para participar de editais pú-
blicos e privados.
Resistir por aqui faz parte do fazer
cultural em todos os tempos. Nestes
estados, especialmente do Norte e do
Nordeste, produzir cultura com re-
cursos mínimos e suportes insufi-
cientes não é novidade.
A cultura no Brasil é o espelho de
sua própria sociedade. É desigual, ra-
cista, injusta, em que poucos têm
muito, e muitos, quase nada.
O mainstream musical é um gran-
de exemplo disso. O que se verifica é
um volume enlouquecedor de di-
nheiro na mão de poucos, e novos ar-
tistas e outros gênios da música con-
temporânea não possuem uma casa
própria para viver.
A desigualdade no mercado da
música sempre se acentuou com a
participação da mídia comercial, que
escolhe uns poucos para dar visibili-
dade. Apesar das mudanças que a in-
ternet trouxe para a produção, a difu-
são e o consumo de música no Brasil,
as televisões e rádios comerciais ain-
da são responsáveis, como já eram há
vinte anos, por formar um público de
massa que investe e consome um
mesmo tipo de música, mesmo num
país tão rico e diverso.
Em um momento como o que es-
tamos vivendo, de pandemia e com-
pleto desalento, todas essas diferen-
ças ficam mais expostas. E o único
jeito de continuar sobrevivendo de
cultura é com a participação efetiva
do Estado.
Mesmo alguns governos ditos de
esquerda não conseguiram criar pro-
jetos emergenciais durante a pande-
mia, como é o caso no meu estado,
Pernambuco.
Ironicamente, uma tentativa de
alívio vem do maior inimigo da cul-
tura, o governo federal, não por von-
tade ou iniciativa próprias, claro, mas
por insistência de alguns parlamen-
tares de esquerda que se sensibiliza-
ram com a penúria vivida por esses
trabalhadores.
A Lei Aldir Blanc homenageia um
dos grandes nomes da música popu-
lar brasileira, que morreu de Co-
vid-19 e com imensas dificuldades
financeiras. Um caso típico da desi-
gualdade que relatei, e olha que Aldir
era branco, de classe média, com
mais acesso do que muitos outros ar-
tistas pelo Brasil.
A Lei Aldir Blanc prevê que recur-
sos da ordem de R$ 3 bilhões, que es-
tavam parados no Fundo Nacional de
Cultura, sejam enviados para todos

A VERDADEIRA RESISTÊNCIA


A guerra para viver


de cultura no Brasil


A ascensão de Bolsonaro à Presidência da República consolida de forma
incomparável o enfraquecimento e a sabotagem à memória e à preservação
da cultura brasileira. Chegou 2020 e com ele a pandemia de Covid-19,
completando o cenário de escassez e caos. O setor cultural, que já
vinha se mantendo com muita dificuldade, viu-se
em extrema vulnerabilidade

POR MELINA HICKSON*

Mesmo durante o
governo Lula ficou
nítida a concentração
de financiamentos de
projetos culturais nas
cidades sudestinas

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