Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7


CULTURAS INDÍGENAS


A história europeia das instituições e das ideias, em seus diferentes matizes,
é uma história da redução dos plurais. Línguas se singularizam em língua; culturas
se singularizam em cultura; territórios se singularizam em território. Na constituição
dos Estados modernos, povos se singularizam em povo

POR BRUNO M. MORAIS E VICTOR ALCANTARA E SILVA*

Canto do povo de um lugar


ESSE NEGÓCIO DE
POVOS E PRIVILÉGIOS
Quando um homem e sua família re-
solveram deixar a aldeia aos pés da
missão em que seu povo havia sido
reduzido e regressar às cabeceiras do
Rio Trairão, onde nasceram e morre-
ram seus pais e avós, o chefe de posto
da Funai lhes teria negado o direito.
Não se poderia esperar do Estado que
demarcasse uma nova terra quando,
nos arredores da missão, seu povo já
tinha uma terra demarcada. Tremen-
do impasse, contra o qual se poderia
evocar argumentos técnicos, jurídi-
cos, as convenções internacionais, a
Constituição. O homem, no entanto,
optou por uma solução mais simples:
acompanhado de seu filho, subiu o
rio até o ponto em que as águas ca-
vam poços nas pedras; diante do re-
bojo, levantou a cabeça, limpou o pi-
garro e cantou a história daquele
lugar. Quando baixaram novamente
à aldeia, o homem e seu filho haviam
inventado um novo nome, o nome de
um povo. Podiam bater novamente
às portas da Funai.
Os mapas não registrarão a locali-
zação desse rio porque seu nome aqui
é fictício – não exporíamos os indíge-
nas aos desmandos do órgão oficial –,
mas asseguramos que a história é ve-
rídica. Está apurada nos cadernos de
campo de um antropólogo do norte
amazônico. Poderia ser, no entanto,
uma anedota para os homens de ter-
no nas salas de situação do Palácio do
Planalto, uma ilustração do ódio de
Abraham Weintraub aos plurais:
“Odeio o termo ‘povos indígenas’,
odeio esse termo!” – disse a bom som
na famosa reunião do dia 22 de abril,
cuja gravação foi publicizada a re-
querimento do Supremo Tribunal Fe-
deral. “Só tem um povo neste país!”

Talvez os ministros rissem da ane-
dota. A piada, contudo, estaria neles.

EM UM NOME, NADA
Inventar um povo é tanto concebê-lo
como encontrá-lo – e qual é a diferen-
ça? No caso desse homem, é preciso
dizer que sua família compartilha a
mesma história de boa parte dos indí-
genas do Brasil: em meados do século
X X, quando a Amazônia era invadida
pelos projetos militares que preten-
diam, a seu modo, inventar um país,
as aldeias enfrentavam os surtos epi-
dêmicos de gripe e malária. Os indíge-
nas se viam na encruzilhada de ceder
ao assédio dos sertanistas e missioná-
rios, que, sob a condição de se assen-
tarem nas áreas reservadas pelo Esta-
do, prometiam a salvação em Cristo e
na cloroquina; ou, a outra opção, re-
sistir e se isolar na mata, arriscando a
morte por doença ou pelo calibre 44
empunhado pelos que avançavam na
rabeira desses grandes projetos.
Os que optavam pela primeira in-
gressavam nos censos dos órgãos in-
digenistas do Estado, que passava a
identificá-los por um nome – o nome
de um povo. Pergunte, no entanto,
aos Wai-Wai, por exemplo, o que sig-
nifica esse nome curioso que lhes pu-
seram e a resposta será: nada. Algu-
mas vezes acrescentam: “É só nome
mesmo”. O nome pelo qual o Estado
designa a maior parte dos povos indí-
genas do Brasil é, como esse, ou um
acidente linguístico, ou uma malda-
de, e há nisso algo afeito ao próprio
sentido político do termo “povo”.

POVO NO PLURAL
No volume I de seu Vocabulário das
instituições indo-europeias, o linguis-
ta francês Émile Benveniste faz uma
investigação filológica do vocabulá-

os estados e municípios única e ex-
clusivamente para socorrer o setor
cultural.
A dúvida é se esse dinheiro che-
gará a todas as famílias que preci-
sam desesperadamente dele. A gin-
cana da burocracia, imposta na
regulamentação da lei, e a falta de
conhecimento dos governos esta-
duais e municipais podem colocar a
perder o recurso, que, uma vez não
executado, deverá ser devolvido aos
cofres da nação.
Para que essa lei fosse aprovada, o
setor cultural precisou se mobilizar.
A partir disso, um novo movimento
de articulação entre os entes da ca-
deia produtiva e criativa começou a
tomar corpo em todo o país.
Por aqui, um grupo do segmento
da música criou o Acorde – Levante
pela Música de Pernambuco, numa
mobilização inédita do setor em ter-
mos de diversidade, com a participa-
ção da cena musical contemporânea,
cultura popular, mestres de maraca-
tus, afoxés, cirandeiros, movimento
negro, movimento periférico, povos
tradicionais e de terreiro, agentes do
interior, técnicos e produtores.
O grupo entregou uma série de
ideias e soluções para o governador,
que nem sequer recebeu seus inte-
grantes para uma reunião solicitada.
Parece ser um fato isolado, mas mos-
tra o que já citei: o diálogo para a con-
cretização de políticas públicas com-
prometidas com o setor cultural é
complicado até entre governos apa-
rentemente mais sensíveis.
Porém, é fato que não será mais
possível trabalhar com cultura no
Brasil daqui para a frente sem enten-
dê-la enquanto luta coletiva e politi-
camente ativa. Conferências popu-
lares, associações que estavam
desativadas, coletivos, cooperativas
culturais, todos voltaram a se mexer,
a conversar e se organizar em nome
da superação.
A cultura popular e quem vive de-
la, as periferias das cidades e os esta-
dos periféricos do Brasil são a inspi-
ração. São deles a verdadeira
resistência de quem conserva a histó-
ria e a tradição, algo fundamental em
tempos em que se tenta apagar a me-
mória de um país.
Não se sabe ainda o tamanho das
sequelas que a última eleição para
presidente causará, ou quais seque-
las essa pandemia deixará. Mas o es-
forço conjunto, movido seja pelo me-
do, pela dor ou pela esperança, será
fundamental neste momento para
garantir a soberania, a liberdade e a
permanência do fazer cultural do po-
vo brasileiro.


*Melina Hickson é produtora cultural e
empresária artística.


rio que designa a ideia de “povo” em
línguas da Europa e do Oriente. Não
há, segundo ele, de uma ponta a ou-
tra do mundo indo-europeu, uma
raiz que atravesse as línguas e desig-
ne uma sociedade organizada. Há, no
entanto, um método: “Toda designa-
ção de caráter étnico”, diz Benvenis-
te, “se faz por diferença e oposição”.
Segundo esse método, os contornos
de um povo são marcados, manifesta
ou implicitamente, na fronteira com
outro e, portanto, implicam uma
perspectiva. No passado – e este é o
exemplo do linguista –, iranianos e
indianos se designavam arya, reco-
nhecendo-se como falantes de uma
língua compreensível entre si e filhos
de uma mesma ascendência. O termo
arya derivaria na forma persa eran e
depois iran. “Iraniano” seria, portan-
to, a continuidade do antigo termo
comum, uma lembrança dos tempos
que antecediam a fronteira que al-
gum dia fora traçada de modo que,
quem a mire em um mapa-múndi,
enxergue dois povos distintos.
O termo “Índia”, que nos mapas
de hoje assinala o outro lado da fron-
teira, teria sido um empréstimo grego
da palavra com que os persas nomea-
vam o rio e a província de seus vizi-
nhos – Hindu, no persa; Sindhu, no
sânscrito. A Europa conheceu os que
viriam a ser os indianos pela pers-
pectiva dos gregos, que por sua vez os
conheceram através dos olhos dos
persas. Passados vinte séculos ou
mais, esse acidente linguístico em-
barca em uma caravela e, de sua proa,
através de uma luneta, chega aos po-
vos do Novo Mundo, daí em diante
conhecidos como “índios”.
Essa invenção dos “povos índios”


  • ou, no vernáculo de Weintraub,
    “povos indígenas” – é um problema à
    modernidade. Historiadores como
    Eric Hobsbawm, Edward Thompson
    e Reinhart Koselleck, entre outros,
    demonstram como a história euro-
    peia das instituições e das ideias, em
    seus diferentes matizes, é uma histó-
    ria da redução dos plurais. Línguas se
    singularizam em língua; culturas se
    singularizam em cultura; territórios
    se singularizam em território. Na


“Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só
tem um povo neste país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só
tem um povo. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser des-
cendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! [Vamos] Acabar com esse
negócio de povos e privilégios.”

Abraham Weintraub, 22 de abril de 2020

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