Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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8 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


constituição dos Estados modernos,
povos se singularizam em povo.
Não à toa, a invenção de um país, o
Brasil, na relação com os povos indí-
genas e em qualquer tempo, mobiliza
a agenda de “descer” (das serras, dos
rios), “reduzir” (nas missões), “pacifi-
car” (o bravo) e “integrar” (à socieda-
de nacional) – verbos oficiais, conju-
gados até hoje pela lei. Com efeito, sob
a disciplina dos missionários e do
chefe de posto da Funai, a diversidade
e a forma como ela se expressava em
pequenos detalhes, como a arte plu-
mária, as pinturas corporais e as téc-
nicas de fabricação dos artefatos, fo-
ram sendo afuniladas. Quando os
idiomas indígenas não eram proibi-
dos, os muitos dialetos de uma mes-
ma língua perdiam espaço para uma

variante que, por qualquer motivo, fo-
ra eleita como oficial. Sumiam os can-
tos. Na constituição dos Estados mo-
dernos, as fronteiras políticas se
reduzem a uma única fronteira políti-
ca, universal e totalizante: ou os po-
vos indígenas renunciam às suas ex-
pressões enquanto povos, ou, no
vernáculo de Weintraub, “saem de ré”.
Seja lá o que isso signifique, um
povo saindo de ré não é uma imagem
de todo ruim. Entrevistando um caci-
que Macuxi, ele mesmo um dos “in-
voluntários da pátria” apartado ain-
da criança de sua família sob os
auspícios oficiais para ser “integra-
do” como peão de uma fazenda de
gado, ele riscou umas linhas no chão:
“O Rio Uailã corre para o Rio Cotin-
go; o Rio Cotingo, para o Rio Branco;

o Rio Branco corre o caminho todo
até o Amazonas”, disse. “Minha his-
tória é remar contra a corrente.”

DANÇANDO COM COBRAS
As águas cantam nos rebojos das ca-
beceiras do Rio Trairão. A passo de
índio, são quatro ou cinco dias de
viagem rio acima desde a missão, ca-
minho pelo qual o homem foi mos-
trando ao filho as marcas nas pedras
e nas árvores que indicavam os cami-
nhos de seus antepassados, as anti-
gas aldeias, os lugares em que caça-
vam, pescavam, em que se escondiam
dos inimigos, fossem bicho ou gente


  • na Alta Amazônia, as onças se apre-
    sentam de muitas formas. Lá em ci-
    ma, então, e por sobre o barulho das
    águas, o velho cantou a história do
    povo daquele lugar: a história do po-
    vo da cobra grande que vivia no fun-
    do daqueles poços; e a história de seu
    velho pai, que dançava com elas.
    A história dizia que, como eles
    mesmos faziam agora, o velho vinha
    à beira do rio escutar as águas e, um
    dia, por entre elas, escutou o canto
    das cobras. A princípio, o velho resis-
    tiu, mas a curiosidade de ver a festa
    das cobras foi mais forte. O velho
    mergulhou até o fundo do poço, on-
    de as mulheres cobras, lindas e en-
    feitadas, dançavam no pátio de uma
    aldeia. O perigo exigia que ele bailas-
    se o mais rápido possível: se elas vis-
    sem seus pés, as cobras saberiam
    que ele era humano. Por essa razão,
    ou pelo efeito da bebida fermentada
    de mandioca, suas pernas bambea-
    ram logo. As cobras o f lagraram. Só
    por sorte ele conseguiu subir de volta
    à superfície e regressar à sua casa,
    aonde chegou vomitando a comida
    que lhe haviam dado: pedaços de
    pau, folhas e algas. Nunca mais o ve-
    lho foi o mesmo. Apesar do medo, ele
    sempre dava jeito de voltar àquelas
    corredeiras; ausentava-se por dias,
    voltava ressaqueado e doente. Quan-
    do, uma vez, uma grande sucuri in-
    vadiu as casas da aldeia, deram por
    sua falta – as cobras o haviam trans-
    formado, finalmente.
    Cantada entre pai e filho, anos de-
    pois, essa história operava uma nova
    transformação: apresentava o avô ao
    seu neto, confundiam-lhes os desti-
    nos. As cobras davam aos homens
    um novo lugar no mundo. Quando ao
    baixarem de volta o rio, o homem e
    seu filho bateram novamente às por-
    tas da Funai para requerer a demar-
    cação das cabeceiras do Rio Trairão
    como a terra indígena do povo da Co-
    bra Grande – um povo que os projetos
    militares fizeram descer das cabecei-
    ras, reduziram na missão, pacifica-
    ram e guiaram à integração com a so-
    ciedade nacional. Ou os indígenas
    renunciavam a seu canto como povo
    de um lugar, ou saíam de ré.


CONTRA A CORRENTE
É nesse sentido que a imagem não é
de todo ruim. Ruim, talvez, seja o que
o Brasil reserva a esses povos, que os
leva a sair de ré. Os vaticínios oficiais,
afinal, nunca foram favoráveis: ainda
em 1832, Karl von Martius publicou
nas Cortes cariocas um livro chama-
do O estado do direito entre os autócto-
nes no Brasil, cujo argumento era, an-
tes de qualquer outro, o de que os
povos indígenas estavam fadados ao
desaparecimento. Não o bastante,
anos depois o mesmo Von Martius
ressurgiu premiado pelo imperador
com esta potente metáfora f luvial, o
primeiro ensaio de “história do Bra-
sil”: três longos rios resumiriam a na-
ção, sendo o primeiro e mais cauda-
loso o rio da raça branca; outro,
menor, corresponderia aos indígenas;
outro, menor ainda, seria alimentado
pela raça negra. O mito das três raças
salvou-lhes do extermínio apenas pa-
ra diluir suas águas nesse rio do povo
brasileiro – no singular, note-se.
À noite, nas malocas do Alto Rio
Negro, os pajés cantam um mito di-
ferente. Um mito no sentido contrá-
rio: uma cobra-canoa que, subindo o
rio, vai deixando pedaços de seu cor-
po e de cada qual brota um povo.
Brota a f loresta ela mesma, brotam
os lugares. Há algo de muito indíge-
na nesse movimento em que se enga-
jam o cacique Macuxi, ou o homem e
seu filho, remando contra a corrente.
Contrariando as previsões oficiais de
seu desaparecimento, os indígenas
seguem subindo às cabeceiras, rea-
tando laços com seus parentes, mul-
tiplicando os lugares, refazendo o
mundo, cantando.
Poder conhecer as canções desses
povos é, de fato, um tremendo privi-
légio. Nesses tempos de seca, em que
o sumiço da f loresta ameaça a sobre-
vivência não só do povo brasileiro
(seja ele quem for), mas dos povos do
mundo (seja qual fronteira os divida),
é bom lembrar quem guarda as cabe-
ceiras de onde escoa a água que abas-
tece o Brasil.

*Bruno M. Morais é advogado, sócio da
Morais & Azanha Advocacia Socioam-
biental, mestre em Antropologia Social
pela Universidade de São Paulo e douto-
rando em Direito Socioambiental pela
Pontifícia Universidade Católica do Para-
ná. Autor de Do corpo ao pó: crônicas da
territorialidade Kaiowá e Guarani nas ad-
jacências da morte, vencedor do prêmio
Anpocs e publicado pela Editora Elefante;
e Victor Alcantara e Silva é mestre em
Antropologia pela Universidade de São
Paulo e doutorando na mesma disciplina
pela Universidade de Brasília. Colabora
com a Coordenação das Organizações In-
dígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
em sua Gerência de Povos Isolados e de
Amazônia - Imagem aérea do Rio Napo, afluente do Rio Solimões Recente Contato.

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