Exame - Portugal - Edição 437 (2020-09)

(Antfer) #1
SETEMBRO 2020. EXAME. 59

“mudam muito rapidamente”. “Não há
uma visão de médio prazo. E falta imple-
mentação.”
Ricardo Paes Mamede considera que
grande parte dos documentos de que es-
tamos a falar não cumpre a função de pla-
nos estratégicos. São visões, reflexões ou
sistematização de ideias sobre o futuro da
economia portuguesa. Mas, normalmen-
te, não trazem com elas estimativas mais
finas, quantificação, priorização de pro-
jetos, medidas detalhadas, prazos e atri-
buição de responsabilidades. O professor
do ISCTE foi, durante seis anos, coorde-
nador do Núcleo de Estudos e Avaliação
do Observatório do QREN (Quadro de
Referência Estratégico Nacional) e vê na
programação de fundos comunitários a
fonte do pouco planeamento que ainda
se faz no País.
“Em Portugal, houve sempre planea-
mento relacionado com os fundos es-
truturais porque eles a isso obrigam”,
explica. Enquanto os documentos que
nascem de organizações empresariais ou
centros de investigação podem ter difi-
culdade em chegar ao terreno por lhes
faltar o respaldo do Governo, a produção
de planeamento pelo Estado sofre de fal-
ta de atenção. A discussão detalhada que
se faz sobre os fundos raramente chega
aos jornais e ainda menos aos olhos do
grande público. Isso deve-se, em parte, à
sua complexidade, mas também à falta de
motivação dos governos. “Os atores po-
líticos não têm incentivos para dar peso
a estas coisas. A política está muito mais
centrada em medidas de curto prazo e,
aqui, os resultados só vão aparecer mui-
to mais tarde. É um problema clássico do
planeamento estratégico.”
Essa dependência da gestão de fundos
comunitários para pensar o futuro do País
fica bastante clara no cenário atual, em
que o plano de António Costa Silva coinci-
de com uma injeção significativa de novo
dinheiro europeu nos próximos anos – a
tal “bazuca” de que o Governo gosta de fa-
lar – e em que as prioridades que destaca
estão alinhadas com a Comissão Europeia.
“Este plano só existe porque vêm aí
mais fundos. Era preciso fazer um plano.
Ele há de ir para Bruxelas e depois volta
tudo ao mesmo”, antecipa Félix Ribeiro.
“Deixámos de ser um país e passámos a

SUSANA PERALTA / Professora de Economia na Nova SBE


ESTRATÉGIA SEM


PRIORIDADES


A economista critica a falta de quantificação e definição


de prioridades do plano de Costa Silva e a sua excessiva abrangência


O tempo urge. Temos até
ao outono para desenhar
o plano de recuperação
e resiliência que dará
acesso ao mecanismo de
recuperação económi-
ca da UE. Que a “Visão
Estratégica” de António
Costa Silva é um passo
na direção desse plano
não há dúvida. Mas será
o passo mais longo, para
encurtar a distância? E
será na direção certa?
A minha resposta à pri-
meira pergunta é um ro-
tundo “não”. Isto não era
trabalho para um homem
só, mesmo se o docu-
mento o revela compe-
tente e eclético. Tinha
de partir de uma equipa
com diferentes especia-
lidades, sensibilidades
políticas e representan-
tes da sociedade civil. Só
assim se conseguiam
estabelecer prioridades e
quantificar o diagnóstico
e os objetivos. Quer um
exemplo? Quando Costa
Silva nos oferece a sua
visão do Interior, fala
do cluster agrícola
e florestal de Bra-
gança, do cluster
digital do Fundão,
entre outros.


Sem um único indicador,
como a percentagem de
emprego, ou a percenta-
gem de empresas com
menos de cinco anos, ou
as dez mais rentáveis, ou
as que mais cresceram,
ou o que seja, em deter-
minados setores, dou por
mim a pensar que clus-
ters tão promissores são
estes. Mais perdida fico
na forma de os dinami-
zar. Voltando ao Fundão,
Costa Silva sugere
reforçar a capacidade
digital instalada, alargar
envolvimento com
empresas, atrair recursos
humanos qualificados
e ligar a outras cidades
em Portugal e Espanha.

Como? Não se sabe.
É mais difícil responder
à segunda pergunta.
São nove objetivos e dez
eixos estratégicos, que
se estendem por mais
de setenta páginas: tanta
abrangência não pode
apontar um caminho.
Pior: há aspetos em que
falha perentoriamente,
como quando afirma que
o regime democrático
soube criar “instituições
fortes e de qualidade”,
varrendo para debaixo
do tapete a corrupção,
entrave maior do nosso
desenvolvimento. Por
outro lado, o documento
está alinhado com a
estratégia de transição
energética e digital da
UE e sublinha repetida-
mente a indignidade da
pobreza e a necessida-
de de uma sociedade
inclusiva. Estes temas
têm de estar na agenda
do que aí vem. É que o
século XXI mal chegou à
maioridade, mas desde
a infância que anda aos
tropeções em crises
trágicas. Ou se
endireita agora, ou
está perdido para
sempre.
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