Exame - Portugal - Edição 437 (2020-09)

(Antfer) #1

Macro



  1. EXAME. SETEMBRO 2020


ser uma região de Bruxelas e chamamos
a isso planeamento. A direita diz que não
se deve intervir, a esquerda quer intervir
muito, mas não tem meios. Então, faz-se
aquilo que Bruxelas quer. Precisávamos
de debater o que queremos e do que pre-
cisamos.”
O risco é não assumirmos as priori-
dades como nossas, o que prejudicará o
compromisso. “Planos que vêm de fora
têm esse problema de base. Caem como
uma espécie de revelação, geram muita
discussão e atenção no momento, mas
depois faltam as estruturas próprias en-
carregues da sua implementação”, lembra
Bruno Cardoso Reis.


ESTADO PERDEU RECURSOS
Um dos motivos para as dificuldades de
planeamento e execução que reúne amplo
consenso é a falta de recursos do Estado.
Da esquerda à direita, praticamente todos
os contactados pela EXAME concordam
que este momento em que se pretende
debater o futuro de longo prazo da eco-
nomia nacional expõe a depauperação da
Administração Pública. Os departamen-
tos foram sendo extintos ou desvaloriza-
dos e assumiu-se que, quando necessário,
se podia sempre encomendar estudos e
pareceres ao privado.
“Há uma desqualificação da Adminis-
tração Pública”, aponta Mira Amaral. As
estruturas técnicas que suportavam a de-
cisão política foram perdendo recursos e
capacidade de influência ou, nalguns ca-
sos, politizaram-se. A vaga de austeridade
dos últimos anos trouxe também cortes e
congelamento de salários. Essas e outras
restrições orçamentais foram tornando a
carreira no setor público menos atrativa.
“Os altos quadros ganham menos do que
no privado. Os governantes chegam sem
experiência de gestão e fecham-se nos ga-
binetes.”
Paes Mamede recorda que essa trans-
formação começou nos anos 90. É com o
último governo de Cavaco Silva “que ar-
ranca o desmantelamento do planeamen-
to, numa lógica de que o Estado não deve
planear, deixando esse exercício para o
mercado”. Félix Ribeiro nota que o sécu-
lo XXI acelerou essa tendência, que con-
tinuaria a ser aprofundada até à última
crise e ao governo de Pedro Passos Coelho.


“Quando Durão Barroso chega ao gover-
no, desiste de ter ministro. A partir desse
momento, a gestão de fundos passa a es-
tar no Ambiente”, lembra o economista.
“Houve uma desvalorização orgânica da
Administração Pública, que evoluiu para
uma estrutura de gabinetes dos ministros
e os seus assessores.”
Hoje, temos novamente um ministro
do Planeamento, pasta detida por Nelson
de Souza. Mas o seu peso político está a
quilómetros dos seus antecessores dos
anos 80 e 90, sendo essencialmente res-
ponsável pelo dinheiro europeu. “O que
temos hoje é um bom gestor de fundos,
mas não é planeamento. Por isso é que
António Costa teve de ir buscar uma pes-
soa de fora para fazer este plano”, diz Fé-
lix Ribeiro.
Essa dificuldade “nota-se nestas altu-
ras em que é preciso encontrar uma visão
e uma saída para uma crise séria”, refere
Bruno Cardoso Reis. “Não digo que seja
má ideia ter alguém de fora a apresentar
essa visão, mas parece-me problemático
que não haja capacidade instalada para
preparar essas ideias. Temos um Minis-
tério do Planeamento, mas não acho que
funcione muito bem. Cada ministério
deveria ter estruturas de planeamento e
existir também uma unidade junto do pri-
meiro-ministro.”
As sucessivas crises que Portugal tem
enfrentado nos últimos 20 anos não aju-
daram. Numa situação de emergência, é
inevitável que o curto prazo seja privile-
giado. O plano de Costa Silva acaba por
receber mais atenção porque se tornou
um exercício raro. “Nos últimos anos 20
anos tem havido uma redução acentuada
da reflexão estratégica. Esta é a primeira
vez em muito tempo que alguém se pro-
põe discutir as prioridades para o País”,
diz Paes Mamede.

SERÁ COSTA SILVA DIFERENTE?
Escrever estas linhas pode assemelhar-se
à descrição de um cemitério. O histórico
mostra que estes documentos têm uma
esperança média de vida limitada e difi-
culdades em sobreviver para lá do debate
mais imediato. Chegados aqui, será que
isso também se aplicará ao plano dese-
nhado por Costa Silva?
Mira Amaral não tem dúvidas: “Não

lhe dou muito tempo de vida. Não é um
plano, é um catálogo.” Augusto Mateus
também não: “A minha sensação é de
que não vamos estar a falar deste docu-
mento daqui a 30 anos.” Paes Mamede vê
um documento “muito disperso”, “pouco
coerente” e “sem uma mensagem sólida”.
“Está condenado a ser uma coisa passa-
geira”, prevê.
Augusto Mateus não vê o documento
como um plano estratégico. “Para isso, ti-
nha de fazer escolhas, recusar certos ca-
minhos. É uma coleção de ideias, que não
procura selecionar, nem hierarquizar. Se
é um exercício de marketing, o que quer
fazer é comunicação e não lançar um de-
bate”, aponta. “E, normalmente, estas ma-
térias pedem-se a equipas e não a uma
pessoa sozinha.”
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